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quinta-feira, 24 de março de 2011

Opinião: Eu devo estar é a ficar maluquinho - Por Gertrudes da Silva*


E porquê? Porque mal a gente começa a pensar que já percebeu alguma coisa deste tresloucado mundo, logo nos cai na sopa um bicharoco destes, que de tão grande e destrambelhado, logo nos entorna o caldo todo e nos enche de nódoas o fatinho domingueiro com que íamos por aí fora todos apinocados.
Começou mais uma guerra, dizem os repórteres possuídos dum inusitado frenesim e mostram-nos as televisões, primeiro em directo e depois em documentários já bem trabalhados, por vezes com música a acompanhar, que a coisa para tristezas é que não está virada.
Tudo esperado, era só coisa de mais dia, menos dia; desta vez é no território da Líbia, e ainda estão por resolver os casos que lhe serviram, pelo que parece, de modelo e incentivo: o Iraque, o Afeganistão e, mais recentemente, na Tunísia e no Egipto, e vamos ficar por aqui, pois as faúlhas já se encarregaram de propagar o fogo às imediações.
No fundo, há sempre um execrável ditador que é preciso derrubar e, se possível, com grande aparato de imagens, como no espectacular derrube da estátua do Saddam e na horripilante execução pública de Ceausescou, e ainda atiram pedras (também merecidas) à Santa Inquisição.
Rapidamente o interior das nossas pacíficas casas é invadindo pelo incrível e ainda mal calculado poder dos modernos meios de comunicação. E, no entanto, vamos lá ser um pouco realistas, bem feitos estariam agora os chineses, nem sequer talvez já fossem motivo de preocupações como, para o bem e para o mal, efectivamente são, se em circunstâncias a estas semelhantes, quando dos trágicos e afamados acontecimentos da Praça Tiananmen, se tivessem deixado ir na cantiga dos arautos imperialistas que têm por missão cumprir os desígnios da globalização, sim, que há muito tempo os teriam feito em pedaços, a começar logo ali pelo Tibete, contencioso em que não me sinto à vontade para emitir uma opinião, e a seguir, papado, bocado a bocado, como tentaram, e até conseguiram com as Guerras do Ópio e tudo que se lhes seguiu na segunda metade do século XIX e uma boa parte, ainda, do século XX. Mas adiante, que o nosso destino é outro!
A força dos média é terrível e tanto mais terrível quanto mais forte é o poder mandante que lhes põe a mão por trás. Olhe-se, e só para dar mais um exemplo, o que aconteceu com a Indonésia, que na altura avançou sobre Timor Leste num momento de vazio de poder, com o ámen proferido no lugar pelas autoridades americanas e depois, quando chegou a hora da verdade, por parte de quem na altura mandava efectivamente nos destinos do mundo – quem seria? – foi pura e simplesmente transformada em diabo, correram mundo as imagens dos massacres de Santa Cruz e, quase até à saciedade, aquela da criancinha praticamente despida que na companhia da sua gente se escapulia por um subterrâneo qualquer, e que às tantas tropeçava e chorava, quem não se lembra?, semelhante à outra de uma criança vietnamita que nos écrans do cinema e das televisões emergia do meio da floresta a fugir daquele inferno de napalm, completamente nua e com o corpo ainda envolto nas chamas. As imagens, então, têm ou não têm uma força descomunal?
Para depois, e voltando ao caso de Timos Leste, do ventre deste labirinto de construção de emoções sair um nado-morto. Que nem prematuro chegaria a ser: uma vaga hipótese de país, que país verdadeiro nunca chegará a ser, porque já nasceu tarde e agarrado como ainda parece estar aos que durante uns poucos de séculos foram os seus pais adoptivos, que é o que ainda hoje se pode ver em documentários e reportagens como as que nos trouxe ainda há bem pouco tempo a Catarina Furtado ou, dito de uma forma mais clara: que país quererá ser este, quando as pessoas ali, a cada passo, deixam escapar em boa parte dos seus desabafos uma incrível vontade de quererem voltar a ser portugueses, e nós, em tudo isto, a tratá-los como se filhos nossos fossem, numa melancolia mal curtida da perda de um império, que se calhar nem verdadeiro império algum dia foi.
Mas voltemos aos dias de hoje. Os bombardeiros, às ordens daquele senhor que anda sempre em bicos de pés, porque pensou um dia ser grande e nunca lá chegará, avançam sobre Tripoli; logo a seguir, já agora que alguém começou, os vasos de guerra americanos, previamente posicionados no Mediterrâneo lançam mísseis mar-terra (deve ser) sobre as posições militares do regime de Kadaffi, a Itália entra a seguir e cresce como talvez nunca se viu o número de países que querem participar nesta cruzada contra o infiel. O Sr. Obama – tantas as esperanças que espalhou por esse mundo fora – de visita ao Brasil, e os brasileiros também que não se iludam, nem por isso se coibiu de lamentar o que estava a suceder, para logo dali fazer despacho, nos gabinetes dos outros, e autorizar o desencadear das operações militares contra mais este diabo, inimigo da democracia, que como a nossa não há outra igual, nisto tudo tal e qual, malgrado as esperanças nele depositadas, aos Noriegas e Sadams Husseins de recente memória, isto para já nem falar nos ainda bem fresquinhos Anwar Sadat e Bem Ali.
Enquanto isso, e na passada, as televisões a mostrarem-nos um aglomerado de dirigentes nos jardins do Palácio do Eliseu, aqui o Sr. Sarkozy sem parecer se importar muito que alguns daqueles figurões dos petróleos teimem em apresentar-se vestidos de mantos e turbantes, ok, come on baby!, e o pequenito que um dia sonhou ser grande a receber a Srª. Clinton num rasgado cumprimento e entre cúmplices sorrisos, não importa se de circunstância ou não, porque obscenos de certeza que são e alguns estragos há-de provocar lá para os lados da Srª. Merkel, a reduzirem, assim, mais este drama que antes do mais é humanitário, a uma brincadeira de miúdos, como se estivessem a jogar, sentados num sofá, numa consola, nintendo ou play-station.
Nunca falha, e lá vêm sempre os mesmos: O José Rodrigues dos Santos aos saltinhos de entusiasmo, já mortinho, vê-se, por vestir o seu colete de caçador e ir lá bem para o centro do Teatro de Operações, donde continua logo a fugir quando as coisas começam mesmo a aquecer; o Rogeiro a dizer que sim, que fazem os americanos e os seus submissos aliados muito bem, que ele, o Kadaffi, estava mesmo a pedi-las, a ver se é desta vez que se acaba mesmo com algumas veleidades de socialismo que ainda ficaram por aí, uns desperdício tóxicos na Coreia do Norte ou em Cuba, isto para já nem falar da China, que esse promete ser um osso mais difícil de roer, porque à pala do socialismo vai por lá desenvolvendo um capitalismo de novo tipo, o que é dirigido não por uma democracia daquelas a que estamos mais habituados, no caso, cada vez com menos cotação na bolsa de valores, isso não importa, mas por um sistema de partido único que dá os mais elevados graus de eficiência até à data conhecidos, mulas velhas como são, ainda falta saber se não serão eles que têm razão. Sim, porque os soviéticos, independentemente da justeza ou não dos seus métodos de construção do socialismo, deixaram-se papar que nem uns anjinhos.
Ah, e, fatal como o destino, ainda cá faltava o general Loureiro dos Santos, de tal modo entendido nestas coisas de intervenções e ingerências militares, que o que admira é como este homem ainda não foi recrutado para o Pentágono, tanto que ele sabe sobre as potencialidades e os erros crassos dos americanos neste tipo de operações que de militares já muito pouco têm.
Eu, cá por mim, para além destes lamentos em tom de refilanço sobre tão candentes temas, não me atrevo a debitar doutrina, nem, sequer, uma convicta opinião, porque eu devo estar é a ficar maluquinho. Aconteceu-me, se calhar, aqui neste meu humilde posto, o que já aconteceu com homens sabidos e mais experimentados nestas lides e alcandorados aos mais altos postos do comando das coisas militares: uma vida inteira a seguir uma carreira para, no fim, concluir que, afinal, o que eu sou é um grande pacifista, que agora olha para a guerra, seja ela qual for, mesmo a dita de libertação, como uma das obras mais horríveis e estúpidas levadas a cabo pelo ser humano.
Talvez por isso, eu, que ainda me sinto tão longe de entender o que se passou e continua a passar nos países da margem sul do Mediterrâneo e noutros afloramentos aqui e além no médio oriente, não sei por que razão especial o caso líbio passou a ser tão diferente dos da Tunísia e do Egipto. A não ser por se tratar de um país rico em petróleo; mas aí vão logo dizer que já é mania, que lá vem a estafada teoria da conspiração, a gente sabe como é. Talvez não seja por isso, não. Se calhar, vão ver, é porque por ali ainda anda, apesar de tão flagrantes contradições, uns resquícios de socialismo, este, islâmico, no dizer do seu tão carismático quanto anedótico guia.
O que é certo é que, mais uma vez, as coisas começaram assim, em directo, pela televisão, como um qualquer programa de reality show, mais uma guerra, em tudo idêntica às do Iraque e do Afeganistão. E eu, que agora descobri que afinal sou um pacifista, fico triste, muito triste e sem vontade alguma de ver e ouvir aqueles trastes que logo aparecem a fazer disto um motivo de divertimento e distracção, sejam eles o Rodrigues dos Santos, que me desculpe o meu amigo e tio dele Mário Brandão, o Nuno Rogeiro que também já conhecemos de ginjeira da televisão ou, então, o tal general, que quando detinha o bastão do comando trocou o Serviço Militar Obrigatório por meia dúzia de tostões e depois, se calhar arrependido do que tinha feito, já em plena queda, se agarrou a uma tal “lei dos coronéis” para, num golpe de teatro de opereta, bater com a porta.
Está dito, está dito. Agora deixem-me ver se, nem que seja para uma ilusão de algum sossego, arrumo aqui algumas coisas que me parecem completamente baralhadas.
O petróleo, ah, pois, o petróleo. Sim, porque se olharmos para o comportamento da dita “comunidade internacional” que ainda ninguém conseguiu explicar-me verdadeiramente quem será essa senhora, ela limitou-se a ficar a ver de longe como as coisas paravam, primeiro na Tunísia, depois no Egipto, no Iémen, e mais recentemente na Síria, essa sim, que alberga e exporta terrorismo, a Jordânia não, que isso é gente amiga. E, sintomaticamente ou não, o que é certo é que nenhum destes países presta alguma coisa em termos petrolíferos ou de gás natural, mas são vizinhos, paredes-meias e até mais com a pedra angular de toda esta zona do globo: o Estado de Israel. E só assim, da conjugação destes dois factores da maior grandeza estratégica – o petróleo e Israel – eu começo a descortinar alguma coisa neste emaranhado de contradições.
Gertudes da Siva, escritor
Viseu, 22-03-2011

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