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domingo, 13 de dezembro de 2020


 

AOS DEUSES POR MIM E POR TI INVENTADOS
 
 
Nem tu sabes quanto eu adoro
os deuses
quando escrevo para ti os poemas da redenção
ou quando me liberto da terra
nos momentos de solidão,
quando tu faltas.
É uma oração profana
que nenhum padre, rabino
ou mullah entende.
É uma oração
que não entra na igreja, na mesquita
e na sinagoga,
não foi revelada
nem ensinada,
não tem símbolos nem hinos
nem ortodoxias
nem assume verdades absolutas.
É aquela oração que tu me ensinaste
em murmúrios quentes, segredados,
nos nossos mútuos encantamentos
e para rezar a todos os deuses
por mim e por ti inventados…
 
                                                        Alexandre de Castro
 
Lisboa, Abril de 2007

sábado, 12 de dezembro de 2020

 


 Urgência do Rendimento Básico Incondicional


Com o desenvolvimento tecnológico e a robotização do trabalho, em que as máquinas substituirão progressivamente a mão do homem, a criação de empregos não vai acompanhar o crescimento demográfico, provocando níveis de desemprego, cada vez mais elevados. Começa a ganhar força a institucionalização universal do Rendimento Básico Incondicional, um rendimento mínimo, que será concedido vitaliciamente a todos os cidadãos, independentemente da sua condição social, económica e laboral, e que não anularia todas as outra formas de apoio social, já instituídas, mas que se destina a evitar a miséria extrema de todos aqueles que vierem a ser marginalizados no mercado de trabalho.

A ideia, inicialmente, choca um pouco, mas se pensarmos melhor, iremos encontrar, e embora de forma mitigada, um instrumento que pode evitar a fome endémica da Humanidade. Naturalmente, esse rendimento mínimo terá de ser inferior ao salário mínimo instituído. O sistema também funcionaria melhor, em termos de justiça social, se o salário mínimo de cada país fosse atualizado automaticamente, através do referencial de uma percentagem fixa, em relação à respetiva média anual dos salários praticados, em cada país. O Rendimento Básico Incondicional obedeceria também a uma proporcionalidade em relação ao salário mínimo ou em relação ao rendimento per capita nacional.

Alguma coisa terá de ser feita a este nível, se não quisermos ser confrontados, a médio prazo, com uma grande tragédia global e, logicamente, também com incidência nacional.

                                                                                           Alexandre de Castro

Fevereiro de 2014

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020


 

D. Quixote
 
 Alto, magro, esquálido,
na cabeça a bacia de barbeiro
ornamento digno de tal guerreiro
elmo dourado de antigo cavaleiro
montado nos ossos duros do Rocinante,
cavalo de muita fome e paciência,
lança partida em cada investida
enfrentando da Natureza a inclemência
cortejando as damas com finura
falando, na sua loucura, com fervor
e imitando Cid, o Campeador …
 
Eis o cavaleiro da Triste Figura …
 
Loucura de todos nós, que nos julgamos sãos,
pedaços da nossa vida pelo mundo
moinhos de vento dos sonhos então desfeitos
sendo apenas Sanchos, contrafeitos,
nem do cura gostando da figura
nem do mestre Nicolau a ronha e a manha,
tão normais e humanos são os seus feitos,
em D. Quixote ressalta a envergadura
forjada na luta e na aventura…
Nunca o medo lhe travou a mão
a espadeirar a esmo mouro ou cristão…
Por dama ofendida dava a vida
mas armava grande confusão,
pois qualquer mulher era princesa
e qualquer estalajadeiro cortesão…
Só lhe invejo o amor por Dulcineia
não por ciúmes dela, coitada, que era tão feia,
mas pela beleza e formosura
que a loucura punha em tal figura…
Doutro modo se recorda a governanta,
senhora do seu nariz, pelo na venta,
pois tal mulher que os livros queima
a seu amo e senhor, sem compaixão,
é de esperar que não obtenha o meu perdão…
 
D. Quixote e Sancho Pança, amigos meus,
gostaria de imitar vossa grandeza,
amar Dulcineia, mesmo feia,
pensando amar uma princesa…
Sonhar os mesmos sonhos sem sofrer
querer também o governo da tal ilha
ter um asno e um Rocinante a jeito meu
comer com os cabreiros o que a terra deu
ver o amor nascer da própria lua
e atacar os carneiros com igual fúria…
 
Se tal loucura fosse razão do meu viver
e tivesse a fidalguia da tal Mancha
gostaria de ser o D. Quixote
e ter por escudeiro o Sancho Pança…
Mas se fosse anafado e de muitas carnes
atarracado e baixo, como compete
a pessoas da sua condição,
incapaz de fazer abstinências
e de Cavalarias nada soubesse,
que isso é de muito finas sapiências,
se me faltassem a coragem e a bravura
quando meu amo enfrentasse um quadrilheiro,
então gostaria de ser o escudeiro
do Cavaleiro da Triste Figura…
 
                                                                              Alexandre de Castro
 
Lisboa, Fevereiro de 1985