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quarta-feira, 30 de março de 2016

A História daquela Sexta-feira negra, a que os cristãos chamam Santa [Conto]


A História daquela Sexta-feira negra, a que os cristãos chamam Santa

Há pouco, vi um pequeno filme que parodiava a Última Ceia, um filme de uma comicidade modesta e, até, de duvidoso gosto. Tomei o seguinte apontamento, que me veio à cabeça, naquele momento: "Afinal, aquilo foi tudo combinado". E comecei a imaginar que a história poderia ter sido outra, mais a meu gosto.
Não eram doze, mas treze, o número de pessoas que se reuniram com Jesus, num cenáculo de Jerusalém, para aquela famosa patuscada. Aos doze discípulos, juntou-se Maria Madalena, que teve de esconder-se debaixo da mesa, para não ficar na fotografia oficial, uma vez que as mulheres estavam excluídas destas reuniões, destinadas apenas a homens de barbas. Em jeito de compensação, no dia seguinte, e antes de ter sido preso, Jesus foi com Maria Madalena fazer um piquenique, num pequeno bosque, nos arredores da cidade, onde ainda tiveram tempo de cheirar as flores campestres, que já estavam a desabrochar, naquela Primavera, que, naquele ano, chegou muito quente. E foi num pequeno lago, que havia ali, que Maria Madalena deu o Último Banho" a Jesus, facto que foi ocultado pelos apóstolos, quando escreveram os Evangelhos, e isto porque lhes convinha apresentar Jesus aos crentes, como um ser totalmente assexuado. Como Maria Madalena estava muito fragilizada, porque, devido ao calor, teve três desmaios, Jesus foi a uma aldeia próxima e alugou, numa loja, uma bicicleta, a um fariseu, aluguer esse que nunca chegou a ser pago, e que,  por iniciativa dos respectivos e sucessivos herdeiros, ainda hoje anda em disputa nos tribunais eclesiásticos. E foi de bicicleta que ambos regressaram a Jerusalém, ele a pedalar e ela sentada no assento sobre a roda traseira. Foi já perto do Templo que uma patrulha de soldados romanos os mandou parar, tendo Jesus sido preso, por não ter licença de condução, passada pela autoridade administrativa romana. Os sacerdotes, que da escadaria do Templo presenciaram o incidente, e como não perdoavam a Jesus o facto de Ele se considerar o Messias, enviado por Jeová, souberam aproveitar a oportuna ocasião para o tramar, sublevando os judeus mais radicais e acusando o “impostor” de promiscuidade. E é com esta acusação que Jesus é levado à presença do cônsul Pilatos, que lavou as mãos e assobiou para o lado, sendo, então, a populaça enfurecida a condená-lo à crucificação.
Durante aquele tormentoso percurso até a gólgota, Jesus, carregando o pesado madeiro, sucumbiu três vezes, e, numa dessas quedas, foi Maria Madalena que lhe limpou a cara, suja de sangue e de terra, com um pano de linho, onde ficaram marcadas, como se fosse um negativo de uma fotografia a preto e branco, as linhas do rosto, onde sobressaiam os olhos a evidenciar grande sofrimento, e a coroa de espinhos, que a populaça, divertida, lhe enfiou na cabeça, como se, naqueles conturbados tempos, já existisse Carnaval.
Morreu trespassado por uma lança de um soldado romano, e nunca se chegou a saber se aquilo foi um gesto de misericórdia, para abreviar o sofrimento do condenado, ou se foi a manifestação de um automatismo, adquirido na guerra, em que, depois da batalha vencida, se assassinavam os feridos graves, a sangue frio.
Maria Madalena é que nunca mais retirou os olhos daquele rosto, um rosto que, ainda naquela manhã, ela vira iluminado por um clarão, que só a alegria do prazer dá, quando ambos cheiravam as flores campestres, no bosque. E ali ficou, sozinha, depois de os familiares e os seguidores de Jesus terem debandado, quando começou a anoitecer.
Julga-se que foi ela que retirou o corpo de Jesus da cruz, não se sabendo onde o sepultou. Também ninguém mais a viu. Ainda hoje, nas noites de lua cheia, se ouvem os seus gritos, a fazerem eco na cerca de muralhas da cidade. Mas ninguém quer ouvir estes gritos, porque Maria Madalena tornou-se incómoda para a História Universal das Verdades Eternas e Indiscutíveis, livro que se transformou no documento fundador do Internacionalismo Cristão, instituído por Paulo de Tarso, na sequência daquele clarão deslumbrante, que rasgou o Céu e iluminou a Terra, na Estrada de Damasco. 
Alexandre de Castro
Lisboa, Março de 2016

Publicado também aqui.

domingo, 27 de março de 2016

A histórica cidade síria de Palmira regressa ao seio da civilização

Ruínas de Palmira

O dia de hoje não poderia ter trazido melhor notícia: a histórica cidade de Palmira foi reconquistada aos vândalos do Estado Islâmico, pelo exército sírio, que contou com a preciosa ajuda da aviação da Rússia, a única potência estrangeira, envolvida naquela guerra, que está verdadeiramente interessada em combater o terrorismo islâmico na região (as outras potências apenas vão fazendo umas cócegas, até porque foram elas, em colaboração com a Arábia Saudita, a fonte inspiradora e financiadora daquela organização criminosa).
Aquelas ruínas históricas do mundo antigo e do mundo romano, que os vândalos chegaram a danificar, regressam assim ao mundo da civilização.
Por outro lado, em termos militares, a Síria ganhou uma nova supremacia estratégica sobre o invasor, já que, a partir da cidade de Palmira, situada num oásis, consegue controlar um vasto território, um deserto, que se estende até à fronteira com o Iraque.

sábado, 26 de março de 2016

A crise munial já está aí....


A Intelligence Unit da revista Economist elenca os maiores perigos que podem agitar o mundo no próximo mês.
1. Abrandamento da economia da China
2. Intervenção militar da Rússia na Ucrânia e na Síria
3. Volatilidade das moedas
4. Rutura da União Europeia em resultado de pressões externas e internas
5. Saída da Grécia da zona euro
6. Eleição de Donald Trump
7. Desestabilização da economia global em resultado do terrorismo “jihadista”
8. Saída do Reino Unido da União Europeia
9. Expansionismo chinês
10. Colapso do investimento no setor petrolífero

***«»***
O economista nobilizado, Nouriel Roubini, que, em 2005, previu a crise financeira nos EUA de 2008, em 2013, afirmou que uma nova crise, muito mais devastadora, iria surgir nos países emergentes e na Europa. Mais tarde, Rugoff, o economista que escreveu a tese, que serviu de apoio à Alemanha, para conceber os planos de austeridade, para aplicar aos países “gastadores” do sul da Europa, e que prescrevia que um país que tivesse uma dívida pública, superior a vinte por cento do PIB, não tinha condições para fazer crescer a sua economia, veio corroborar o aviso de Roubini. E a crise está aí, indisfarçavelmente, embora os dirigentes políticos não a admitam oficialmente. E o mais grave, é que esta crise vai ser global, tal já é a forte interdependência entre as economias dos vários países.
Por outro lado, e considerando aqueles dez factores de perigos, elencados pela Intelligence Unit, pode-se facilmente constatar que também pode haver uma interdependência entre alguns deles, o que vai potenciar ainda maiores perigos para a economia global. A diminuição do nível de produção na China, devido à diminuição da procura global, tem como efeito negatico imediato no colapso do investimento no sector petrolífero.  

quinta-feira, 24 de março de 2016

A reconquista de Palmira, ao Estado Islâmico, está para breve...


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O arco do triunfo de origem romana, com 2000 anos, na cidade histórica de Palmira, foi alvo, no ano passado, de uma acção criminosa, levada a cabo pelo Estado Islâmico, que o fez explodir, o que levou a UNESCO a considerar que se tratou de um crime de guerra.
No entanto, as forças do exército da Síria, com a ajuda da aviação russa, já entraram na cidade e estão prestes a reconquistá-la.
Sobre a cidade de Palmira, ver aqui..

Agradecimento...


Agradeço ao Ivair Nunes a amabilidade de ter aderido ao Alpendre da Lua.

terça-feira, 22 de março de 2016

A Europa não pode aliar-se com quem a vem atacar no próprio coração

As ruas da minha cidade encheram-se de blindados do Exército. Outra vez. [Expresso]

A Europa não pode aliar-se com quem a vem atacar no próprio coração

Ontem, quando publiquei aqui um vídeo humorístico sobre o terrorismo bombista dos fanáticos jihadistas muçulmanos, a coisa era a brincar. Hoje, em Bruxelas, foi a sério. E continuará a ser a sério, no futuro, enquanto a Europa continuar a fomentar guerras no Médio Oriente e a fornecer armamento a grupos rebeldes, que combatem regimes daquela região, que lhe são hostis, como é o caso do governo da Síria, ou a assinar acordos, como aquele que assinou, há dias, com o regime do fundamentalista Ergodan, da Turquia, que é um autêntico tiro no pé, já que a Turquia joga, no xadrez do Médio Oriente, com um pau de dois bicos. A Turquia, por um lado, e formalmente, é um membro da NATO, logo um aliado do ocidente, mas, por outro lado, e secretamente, apoia o extremismo islâmico, colaborando activamente com o ISIS (Estado Islâmico). O território da Turquia é a placa giratória do trânsito dos terroristas entre o Médio Oriente e o ocidente. É pela Turquia que as armas, provenientes da Europa, chegam ao ISIS. 
O palhaço do Eliseu e a vaca de Berlim ainda não perceberam (ou não querem perceber) que basta meia dúzia de muçulmanos fanáticos para porem em polvorosa uma cidade como Paris, Bruxelas ou Berlim. E, além da fome, nada é mais desestabilizador para a vida de uma cidade, do que a percepção, por parte dos cidadãos, da falta de segurança no espaço público.E o problema não se resolve apenas com o reforço da segurança, e muito menos com a transformação da Europa numa fortaleza securitária. O reforço da segurança interna é necessário, pois o inimigo está cá dentro, assim como é necessária a apertada vigilância das fronteiras, as da UE e as dos países que a compõem. Mas o grande problema continua a ser político, mais propriamente, um problema de política externa. E, neste domínio, a Europa tem de se demarcar das intenções belicistas dos EUA, em relação ao Médio Oriente, um processo que teve início com a absurda invasão do Iraque, justificada com o obtuso argumento da existência de armas de destruição maciça e massiva, e que, posteriormente, nunca foram encontradas, o que me levou a afirmar que os serviços secretos ocidentais confundiram as caixas de fósforos, que os iraquianos traziam nos bolsos, para acender cigarros, com as tais perigosíssimas armas. 
Em todas as guerras levadas a cabo pelos Estados Unidos, contra países árabes, e o apoio ao Estado de Israel, na sua luta cruel contra o povo da Palestina, verificou-se sempre o envolvimento da Europa, com a França a liderar esse envolvimento, como aconteceu na invasão da Líbia. Hoje, já se sabe que a França treinou, no território sírio, dominado pelos rebeldes, que lutam contra o presidente Bashar al-Assad, militantes do ISIS (Estado Islâmico). Também se sabe que a França vende armas a esses rebeldes, que, posteriormente, vão para as mãos do ISIS. A Alemanha e a Bélgica também entram nesses negócios. E isto para não falar da aliança do ocidente com a Arábia Saudita, o país que mais financia o terrorismo jihadista e que, ao mesmo tempo, tem um projecto ambicioso para implantar o Islão na Europa, através da disseminação de madrassas e de mesquitas, por tudo que é sítio no espaço europeu. 
Resumindo: a Europa não pode aliar-se nem financiar quem, posteriormente, a vem atacar no seu coração, matando cidadãos europeus inocentes.

domingo, 20 de março de 2016

Caso Lula: que ninguém atire a primeira pedra…


Caso Lula: que ninguém atire a primeira pedra…

Lula está apenas a ser investigado. É suspeito da prática de crimes de corrupção, mas, até à data, ainda não foi acusado formalmente, com base em provas objectivas. Até ao seu julgamento, se ele vier a ocorrer, goza do estatuto da presunção de inocência. Por sua vez, o juiz Sérgio Moro, que conduz o respectivo processo de investigação, violou grosseiramente a lei, ao divulgar uma escuta telefónica, mesmo que fortuita, em que aparece a Presidente Dilma, o que não dignifica a justiça brasileira, que entrou perigosamente no processo da sua politização. E os órgãos judiciais não podem fazer política. Têm apenas a nobre tarefa de investigar, processar, julgar, e, se for caso disso, condenar. 
A Presidente Dilma pode nomear quem muito bem entender, para um cargo ministerial. E o cidadão Lula da Silva não tem nenhum impedimento legal, a proibir a sua nomeação como ministro, pois está na plena posse de todos os seus direitos constitucionais e individuais. Claro que, politicamente, a questão é potencialmente polémica, estando sujeita aos humores ideológicos e às paixões partidárias, mas não é o poder judicial que tem competência para a resolver.
Não queira o Brasil imitar o folhetim do caso Sócrates, em que, depois de meio ano, após a sua prisão preventiva, ainda não foi acusado. 
Com isto, não quero dizer que, quer Lula, quer Sócrates, estejam inocentes. Mas, também, ninguém de boa fé os poderá considerar culpados. Aguardemos a acusação, as provas e o julgamento. Então, depois disto, já poderemos atirar as pedras ou ter de pedir desculpa.

sábado, 5 de março de 2016

A ADSE e a liquidação do SNS _ por Mário Jorge


A ADSE e a liquidação do SNS

A criação da ADSE em 1963, então com o nome de “Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado”, surgiu num momento em que começavam a verificar-se, em pleno regime ditatorial, os primeiros passos para o alargamento da rede assistencial na sequência de múltiplas pressões de diversos sectores de trabalhadores, de que a ampla e firme movimentação dos médicos portugueses nos últimos anos da década anterior foi o exemplo mais determinante e que culminou com o célebre “Relatório sobre as Carreiras Médicas”, divulgado em 1961 e que teve como redactor principal o Prof. Miller Guerra.

A atribuição de um sistema de saúde específico para os funcionários públicos teve como objectivo fundamental estabelecer um serviço de assistência à semelhança do que já tinha sido criado 2 ou 3 anos antes para o sector privado e que eram as “caixas de previdência” ligadas a várias profissões.
Em Maio de 2008 verificou-se uma importante polémica pública na sequência de um acordo estabelecido pelo então ministro das finanças, Teixeira dos Santos, com um dos principais grupos privados na saúde e que constituiu a abertura da “porta” para tornar rapidamente a ADSE como o principal veículo de financiamento destes grupos.

Na altura, a então ministra da saúde, Ana Jorge, assumiu publicamente e em plena Assembleia da República uma clara divergência com esta medida, afirmando que “ é de lamentar que tenha sido celebrado o acordo com o Hospital da Luz. Seria bom que as verbas da ADSE entrassem no sector público” e que era “uma oportunidade perdida para se investir no sector público”.

Durante o anterior governo da coligação esta via de financiamento aos grupos privados pela ADSE foi completamente escancarada, desde logo com a passagem da tutela deste subsistema do Ministério das Finanças para o Ministério da Saúde.

Sabendo-se pela prática política e ideológica desse governo que tudo estava na agenda de privatização e que o SNS era um dos inimigos públicos a abater, a ADSE teria uma missão gradual de passar de principal via de financiamento dos grupos privados para culminar na integral substituição do SNS e na sua transformação num seguro obrigatório para todos os cidadãos.

É dentro deste esquema que se deve entender o aumento da percentagem de descontos para a ADSE e a passagem da sua tutela para a Saúde onde todo o processo seria gerido de forma mais célere e integrada, no plano político e operacional.
E é ainda dentro deste esquema que se devem enquadrar as recentes declarações públicas da candidata única à liderança do CDS/PP e ministra nesse governo que defendeu o alargamento integral da ADSE a todos os portugueses.

Ao longo dos últimos anos foram sendo implementadas medidas reestruturantes dos serviços de saúde com a suposta propaganda de visar melhorar a sua capacidade de resposta e da qualidade do seu desempenho, mas que na sua essência tinham uma premeditada acção debilitadora da sua missão constitucional e um objectivo de criar um alargado campo de implantação dos negócios privados à custa, sempre, dos dinheiros públicos.
É assim que tem de se entender o famigerado processo de encerramento de diversas maternidades em várias zonas do país a partir do número mágico dos 1500 partos anuais, quando outros países como, por exemplo, a França e a Austrália aplicavam números bem mais baixos.
E o que é curioso é que foram encerrando maternidades em serviços públicos com a propaganda de que a realização de menos partos do que 1500 anuais faziam perigar a vida das paturientes e dos recém-nascidos, ao mesmo tempo que foram permitindo a abertura de serviços privados em diversos desses mesmos locais sem a obrigação de fazerem mais do que esse número de partos.    

A pretexto de criarem economias de escala e de promoverem uma gestão mais integrada e com menos desperdícios foram implementados os centros hospitalares e aquilo que hoje é também visível é que em muitos casos essa foi a “capa” para esconder a destruição de serviços de diversas especialidades com a sua concentração numa das unidades hospitalares e a abertura imediata de espaços geográficos onde temos assistido à proliferação sem precedentes de clínicas de grandes grupos privados, onde a sua viabilidade económica é assegurada pelos utentes beneficiários da ADSE e de outros subsistemas públicos de saúde.

Simultaneamente, quando foi desencadeada a chamada Reforma dos Cuidados de Saúde Primários logo foi patente a sua amputação política e operacional porque foi, de imediato, restrita à criação das USF e mais nada avançou.

Apesar deste facto, a criação das USF representou um enorme salto quantitativo e qualitativo a nível da prestação dos cuidados de saúde pela Medicina Familiar e introduziu uma autonomia de decisão e de funcionamento às equipas multidisciplinares que estruturam essas unidades, escapando ao poder centralista, burocrático e discricionário dos comissários políticos nomeados pelos aparelhos partidários no poder em cada momento.

Naturalmente que esta autonomia foi sendo objecto de múltiplos processos de avaliação e de acompanhamento.

Só que a “burocracia” de aparência independente que pulula nos vários escalões de decisão da estrutura hierárquica dos serviços aliada ao comissariado político procurou, de imediato, fazer reverter este processo que lhes escapava ao controlo, conseguindo a criação de mega ACES (Agrupamentos de Centros de Saúde), curiosamente pela mão do mesmo ministro da saúde, Prof Correia de Campos, que tinha represtinado o diploma das USF elaborado e publicado poucos anos antes pela então ministra Drª Maria de Belém.

Com esses ACES muitos serviços de maior proximidade aos cidadãos também começaram a ser desactivados e o resultado foi mais um contributo para o tal rápido florescimento profuso das tais clínicas de grupos económicos.

Se num determinado contexto histórico a criação desses subsistemas de saúde tiveram a sua justificação, à medida que o SNS se foi desenvolvendo e conseguindo a cobertura integral do território do país e da população deveriam ter gradualmente desaparecido e todo o universo dos cidadãos ficar por ele abrangido.

A acção do anterior ministro Dr Paulo Macedo foi orientada, de forma subtil, para a gradual desagregação do SNS e a sua progressiva privatização.

A concepção que esteve sempre subjacente à sua gestão político-ideológica foi espartilhar e desmembrar os serviços de saúde, a começar pela generalização dos contratos com empresas de cedência de mão de obra médica que envolviam volumosos pacotes de horas pagos de forma generosa ao contrário do que ia acontecendo com os sucessivos cortes salariais aos profissionais da Administração Pública, a pretexto da crise e da austeridade.

O anúncio recente de que o actual governo estava a preparar um substancial alargamento do universo de beneficiários da ADSE é, de algum modo, surpreendente e sobretudo chocante.

Se todos sabemos que a ADSE tem sido uma das principais fontes de financiamento dos grupos privados na saúde que lhes tem possibilitado a sua viabilidade económica, alargar ainda mais o seu universo é oferecer a esses grupos uma verdadeira “galinha de ovos de ouro”, ainda mais gorda.

Por outro lado, é constrangedor verificar as posições de concordância por parte dos partidos à esquerda do PS e que com ele têm um acordo de viabilização governativa.

Admito que depois de vários anos de fortes penalizações que atingiram a generalidade dos funcionários da Administração Pública, erigidos em “bombo da festa” da política antissocial e antilaboral do anterior governo, seja muito difícil vir defender uma clara posição de denúncia desta medida e das suas implicações finais a curto/médio prazo: a integral destruição do SNS e do direito constitucional à saúde.

No entanto, é necessário abandonar perspectivas corporativas, demagógicas e de cedência ao populismo fácil e afrontar problemas desta enorme gravidade, tendo a coragem de afirmar que este é o caminho que conduzirá à destruição do SNS, e ainda por cima em gestação a nível do partido que há umas décadas atrás teve a responsabilidade de estabelecer as suas bases programáticas e legais.

As graves implicações desta medida são de tal forma previstas pela actual equipa ministerial da saúde que esta não foi capaz de assumir a sua divulgação e delegou tal anúncio em deputados do grupo parlamentar do PS.

É que este alargamento da ADSE torna agora ainda mais perceptível as tais ideias do “mercado interno”, da livre escolha dos hospitais pelos doentes e da definição de um conjunto de indicadores para estabelecer os níveis de financiamento penalizadores para algumas destas unidades de saúde, divulgadas pelas instâncias do Ministério da Saúde.

São todas peças que encaixam na perfeição e que são lamentavelmente recuperadas do catecismo ideológico neoliberal da Thatcher e do Blair que conduziu à destruição do NHS britânico.

Não defendo uma posição de extinguir por decreto, de um dia para o outro, a ADSE e os outros subsistemas, apesar de considerar que se tratam de duplas tributações para a saúde e de não fazerem sentido quando existe um SNS geral, universal e tendencialmente gratuito, pelo menos no texto constitucional.

No entanto, se o projecto deste Governo não é o que parece, então torna-se inadiável que a ADSE passe a dispor de uma gestão transparente e sujeita ao plebiscito dos trabalhadores da Administração Pública, com a inclusão de representantes sindicais nos seus órgãos de gestão.

Não se trata, também, de defender concepções que neguem os devidos espaços de acção às entidades privadas, mas aplicar um princípio de que dinheiros públicos devem ser canalizados para os serviços públicos e dinheiros privados para as entidades privadas. Quem quiser defender delimitação de sectores com o mínimo de seriedade política sabe que esta é a pedra basilar de tal processo. Independentemente das colorações de quem apresenta uma qualquer medida, o que importa é avaliar os seus impactos e as consequências dela resultantes.

Ora, quando se pretende dar mais um passo, a que outros inevitavelmente se seguirão, para alargar o universo da ADSE e, por conseguinte, a sua contribuição para as entidades privadas, enquanto é negado o adequado financiamento à revitalização e modernização do SNS e dos seus serviços, é a destruição do SNS que está em desenvolvimento, numa acção demolidora sem precedentes.

O objectivo é concretizar mais uma etapa na criação das premissas de um seguro obrigatório de saúde que depois proclame como facto consumado o fim do SNS.

Não demorará muito tempo para que certos sectores de opinião verifiquem o logro em que se meteram, provavelmente já tarde demais. Esta medida da ADSE vem confirmar que existe mesmo um fantasma que continua a esvoaçar dentro do Ministério da Saúde, independentemente da mudança de coloração partidária.

Termino com a minha declaração de interesses: sou beneficiário da ADSE !!! 29/2/2016

Mário Jorge Neves
Médico,
Dirigente Sindical
29/2/2016

***«»***
Comentário do editor:
A ADSE está a transformar-se num verdadeiro cavalo de Tróia, para partir ao assalto e à destruição do Serviço Nacional de Saúde.

Chamo a atenção para um artigo do mesmo autor, publicado aqui, e que lança um esclarecido entendimento sobre a estratégia de longo prazo, do actual titular do Ministério da Saúde, para, de uma forma encapotada, privatizar os segmentos lucrativos do SNS, à custa dos dinheiros públicos.

terça-feira, 1 de março de 2016

Vem aí mais um "Mecanismo" europeu, o Mecanismo de Insolvência de Soberanos…


Vem aí mais um "Mecanismo" europeu, o Mecanismo de Insolvência de Soberanos…

Em 2015, a economia portuguesa cresceu 1,5 por cento, em relação ao ano anterior, valor este que se atingiu, devido essencialmente ao aumento do consumo, proporcionado oportunisticamente, em ano de eleições, pelo governo de direita, que por este meio procurou captar votos,  ao atenuar ligeiramente a dura austeridade, imposta nos três anos anteriores do seu mandato.
As exportações também aumentaram, e a explicação encontra-se no aumento da competitividade externa, promovida por uma gigantesca desvalorização salarial (cerca de 20 por cento), que incidiu sobre os trabalhadores do sector público e do sector privado.
No entanto, falharam os objectivos em relação ao investimento, quer o investimento externo, quer o investimento interno, o que demonstra que não é unicamente através da desvalorização do trabalho que se atraem os capitais. Para além disto, grande parte do investimento externo foi conseguido, através da concessão dos vistos gold, que é um investimento pouco produtivo, porque se trata apenas de uma transacção comercial de bens imóveis de luxo, já construídos, e que, por isso, não acrescenta valor, não aumenta a riqueza nacional, nem aumenta o emprego.
Perante tão modesto crescimento da economia portuguesa, apesar de ter sido o maior aumento percentual dos últimos anos, eu pergunto como é que irão gerar-se recursos financeiros suficientes para pagar a colossal dívida pública externa? É que, se bem me lembro, no tempo da troika e do seu famigerado “Memorando”, alguém qualificado fez as contas e chegou à conclusão de que, para pagar os empréstimos do resgate à Comissão Europeia, ao BCE e ao FMI, no valor de 72 mil milhões de euros, a economia portuguesa teria de crescer 4,5 por cento ao ano, até à última amortização, que ocorrerá em 2036. Ainda me recordo que, na altura, quando li a respectiva notícia, fiquei com os olhos em bico, que até parecia um chinês a olhar para um prato de arroz... 
Quanto a mim, que pouco percebo destas coisas, a não ser o trivial, penso que, quem anda a sustentar a ideia de que esta dívida é sustentável e que pode ser paga, está deliberadamente a enganar os portugueses. Com este raquítico crescimento, a manter-se, o Estado não conseguirá obter um sustentável aumento de receitas, através dos impostos, e que venha a permitir-lhe a plena assumpção dos compromissos com os credores institucionais. 
À mesma conclusão deveriam ter chegado os cinco "sábios", que fazem parte do "German Council of Economic Experts", um grupo oficioso de cinco economistas, que faz assessoria ao governo alemão, e que propuseram, para ser eventualmente apresentado ao Conselho Europeu, e sob proposta da Alemanha, a criação de um chamado “Mecanismo de Insolvência de Soberanos” (mais um "Mecanismo" na UE!), que venha, no futuro, a contemplar a hipótese, até aqui nunca admitida pelos Tratados, nem pelos dirigentes europeus, da saída (provisória?) da zona euro dos países considerados insolventes. E, neste quadro, Portugal seria o primeiro da lista, a sair do euro, já que, a Grécia, embora a viver uma situação económica e financeira mais grave, se encontra, actualmente, sob o seu terceiro resgate, o que impediria a aplicação imediata desse novo estatuto, o do “Mecanismo de Insolvência de Soberanos”, caso ele venha a ser aprovado pelo Conselho Europeu.
Para já, este plano dos cinco sábios (ver aqui) - um deles votou contra - obteve a aprovação do sinistro ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, o que é meio caminho andado para ser bem recebido por todos os facciosos europeístas, incluindo Passos Coelho e Paulo Portas.
Do grupo dos cinco "sábios", o dissidente foi o economista, Peter Bofinger, que resolveu, quebrando o sigilo, vir para a praça pública, para afirmar, peremptoriamente, que, aquele plano, a ser aplicado, seria "o princípio do fim do euro". Perante esta afirmação, os governos do sul da Europa começaram a tremer. 
A lógica que presidiu à concepção deste plano, inspirou-se na filosofia inerente à concepção das recentes novas regras para a banca da zona euro, que estabelecem que, em caso de falência, são os accionistas e os depositantes com depósitos, acima dos 100 mil euros, a suportar as perdas, e não os credores. Com esta manobra, os bancos alemães, franceses e espanhóis, detentores de dívidas colossais, de cobrança duvidosa, por parte dos bancos gregos e portugueses, ficaram, assim, com a garantia de receber parte dos créditos, através da recapitalização dos bancos devedores, que accionistas, depositantes e o próprio Estado de origem terão de fazer. É uma forma de transferir riqueza dos países mais pobres (devedores), para os países mais ricos (credores). É o que se pretende também fazer com o tal Mecanismo de Insolvência de Soberanos. Os governos, com elevadas dívidas, que sejam considerados insolventes, arriscam-se a saltar fora do euro, ameaça implícita que, para os quatro sábios, que gizaram o plano, será suficiente para atemorizar e responsabilizar os respectivos governos - os dos países "gastadores"- que passarão a ser mais submbissos e colaborantes, em relação às ordens de Bruxelas e de Berlim. Jugo que este plano surgiu, devido ao grande susto provocada pela rebelião grega, entretanto abortada.  
Se repararmos bem na complexidade de Tratados, Mecanismos e Directivas da União Monetária, somos levados a crer que nem já a Alemanha sabe o que fazer para salvar o euro. As contradições do euro são muitas e o seu futuro está a ser constantemente ameaçado.  Abana a cada nova crise, e a que aí vem vai ser muito dura e violenta, e quanto mais o querem endireitar, mais ele se entorta. Ou eu me engano muito, e já não serão os países a querer sair do euro, mas será o euro a querer sair dos países, pelas portas das traseiras.  

É a vida, diria António Guterres, o primeiro-ministro que, na sequência do cavaquismo, meteu Portugal na alhada do euro, e, que, agora, como prémio, e apoiado pela Opus Dei, vai ser um dos candidatos, ao cargo de Secretário Geral da ONU.
Alexandre de Castro
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Anexo: Dois comentários metafóricos que, a propósito, deixei na minha página do Facebook:

O universo da zona euro parece-se cada vez mais com um gigantesco hipódromo, onde os cavalos competem com os burros. Claro, que os cavalos ganham sempre a corrida. Os burros somos nós...
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Quando aderiu ao euro, Portugal fez aquela figura da criança que vestiu o casaco do pai. Ficava-lhe demasiado grande. E o alfaiate foi da opinião que não resultava desmanchá-lo e cortá-lo, porque ficaria sempre mal atamancado. Era preferível fazer um novo casaco à medida do corpo da criança. O mesmo se passa com a moeda. O euro é uma moeda com um valor cambial muito elevado, que não se ajusta à produtividade da economia portuguesa, não possibilitando a competitividade das respectivas exportações para os espaços extra europeus. Por isso, a participação das exportações na formação do produto é das mais baixas entre os países do euro.