A ADSE e a liquidação
do SNS
A criação da ADSE em 1963, então
com o nome de “Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado”, surgiu
num momento em que começavam a verificar-se, em pleno regime ditatorial, os
primeiros passos para o alargamento da rede assistencial na sequência de
múltiplas pressões de diversos sectores de trabalhadores, de que a ampla e
firme movimentação dos médicos portugueses nos últimos anos da década anterior
foi o exemplo mais determinante e que culminou com o célebre “Relatório sobre
as Carreiras Médicas”, divulgado em 1961 e que teve como redactor principal o
Prof. Miller Guerra.
A atribuição de um sistema de
saúde específico para os funcionários públicos teve como objectivo fundamental
estabelecer um serviço de assistência à semelhança do que já tinha sido criado
2 ou 3 anos antes para o sector privado e que eram as “caixas de previdência”
ligadas a várias profissões.
Em Maio de 2008 verificou-se uma
importante polémica pública na sequência de um acordo estabelecido pelo então
ministro das finanças, Teixeira dos Santos, com um dos principais grupos
privados na saúde e que constituiu a abertura da “porta” para tornar
rapidamente a ADSE como o principal veículo de financiamento destes grupos.
Na altura, a então ministra da
saúde, Ana Jorge, assumiu publicamente e em plena Assembleia da República uma
clara divergência com esta medida, afirmando que “ é de lamentar que tenha sido
celebrado o acordo com o Hospital da Luz. Seria bom que as verbas da ADSE
entrassem no sector público” e que era “uma oportunidade perdida para se
investir no sector público”.
Durante o anterior governo da
coligação esta via de financiamento aos grupos privados pela ADSE foi
completamente escancarada, desde logo com a passagem da tutela deste subsistema
do Ministério das Finanças para o Ministério da Saúde.
Sabendo-se pela prática política
e ideológica desse governo que tudo estava na agenda de privatização e que o
SNS era um dos inimigos públicos a abater, a ADSE teria uma missão gradual de
passar de principal via de financiamento dos grupos privados para culminar na
integral substituição do SNS e na sua transformação num seguro obrigatório para
todos os cidadãos.
É dentro deste esquema que se
deve entender o aumento da percentagem de descontos para a ADSE e a passagem da
sua tutela para a Saúde onde todo o processo seria gerido de forma mais célere
e integrada, no plano político e operacional.
E é ainda dentro deste esquema
que se devem enquadrar as recentes declarações públicas da candidata única à
liderança do CDS/PP e ministra nesse governo que defendeu o alargamento
integral da ADSE a todos os portugueses.
Ao longo dos últimos anos foram
sendo implementadas medidas reestruturantes dos serviços de saúde com a suposta
propaganda de visar melhorar a sua capacidade de resposta e da qualidade do seu
desempenho, mas que na sua essência tinham uma premeditada acção debilitadora
da sua missão constitucional e um objectivo de criar um alargado campo de
implantação dos negócios privados à custa, sempre, dos dinheiros públicos.
É assim que tem de se entender o
famigerado processo de encerramento de diversas maternidades em várias zonas do
país a partir do número mágico dos 1500 partos anuais, quando outros países
como, por exemplo, a França e a Austrália aplicavam números bem mais baixos.
E o que é curioso é que foram
encerrando maternidades em serviços públicos com a propaganda de que a
realização de menos partos do que 1500 anuais faziam perigar a vida das
paturientes e dos recém-nascidos, ao mesmo tempo que foram permitindo a
abertura de serviços privados em diversos desses mesmos locais sem a obrigação
de fazerem mais do que esse número de partos.
A pretexto de criarem economias
de escala e de promoverem uma gestão mais integrada e com menos desperdícios
foram implementados os centros hospitalares e aquilo que hoje é também visível
é que em muitos casos essa foi a “capa” para esconder a destruição de serviços
de diversas especialidades com a sua concentração numa das unidades
hospitalares e a abertura imediata de espaços geográficos onde temos assistido
à proliferação sem precedentes de clínicas de grandes grupos privados, onde a
sua viabilidade económica é assegurada pelos utentes beneficiários da ADSE e de
outros subsistemas públicos de saúde.
Simultaneamente, quando foi
desencadeada a chamada Reforma dos Cuidados de Saúde Primários logo foi patente
a sua amputação política e operacional porque foi, de imediato, restrita à
criação das USF e mais nada avançou.
Apesar deste facto, a criação das
USF representou um enorme salto quantitativo e qualitativo a nível da prestação
dos cuidados de saúde pela Medicina Familiar e introduziu uma autonomia de
decisão e de funcionamento às equipas multidisciplinares que estruturam essas
unidades, escapando ao poder centralista, burocrático e discricionário dos
comissários políticos nomeados pelos aparelhos partidários no poder em cada
momento.
Naturalmente que esta autonomia
foi sendo objecto de múltiplos processos de avaliação e de acompanhamento.
Só que a “burocracia” de
aparência independente que pulula nos vários escalões de decisão da estrutura
hierárquica dos serviços aliada ao comissariado político procurou, de imediato,
fazer reverter este processo que lhes escapava ao controlo, conseguindo a
criação de mega ACES (Agrupamentos de Centros de Saúde), curiosamente pela mão
do mesmo ministro da saúde, Prof Correia de Campos, que tinha represtinado o
diploma das USF elaborado e publicado poucos anos antes pela então ministra Drª
Maria de Belém.
Com esses ACES muitos serviços de
maior proximidade aos cidadãos também começaram a ser desactivados e o
resultado foi mais um contributo para o tal rápido florescimento profuso das
tais clínicas de grupos económicos.
Se num determinado contexto
histórico a criação desses subsistemas de saúde tiveram a sua justificação, à
medida que o SNS se foi desenvolvendo e conseguindo a cobertura integral do
território do país e da população deveriam ter gradualmente desaparecido e todo
o universo dos cidadãos ficar por ele abrangido.
A acção do anterior ministro Dr
Paulo Macedo foi orientada, de forma subtil, para a gradual desagregação do SNS
e a sua progressiva privatização.
A concepção que esteve sempre
subjacente à sua gestão político-ideológica foi espartilhar e desmembrar os
serviços de saúde, a começar pela generalização dos contratos com empresas de
cedência de mão de obra médica que envolviam volumosos pacotes de horas pagos
de forma generosa ao contrário do que ia acontecendo com os sucessivos cortes
salariais aos profissionais da Administração Pública, a pretexto da crise e da
austeridade.
O anúncio recente de que o actual
governo estava a preparar um substancial alargamento do universo de
beneficiários da ADSE é, de algum modo, surpreendente e sobretudo chocante.
Se todos sabemos que a ADSE tem
sido uma das principais fontes de financiamento dos grupos privados na saúde
que lhes tem possibilitado a sua viabilidade económica, alargar ainda mais o
seu universo é oferecer a esses grupos uma verdadeira “galinha de ovos de
ouro”, ainda mais gorda.
Por outro lado, é constrangedor
verificar as posições de concordância por parte dos partidos à esquerda do PS e
que com ele têm um acordo de viabilização governativa.
Admito que depois de vários anos
de fortes penalizações que atingiram a generalidade dos funcionários da
Administração Pública, erigidos em “bombo da festa” da política antissocial e
antilaboral do anterior governo, seja muito difícil vir defender uma clara
posição de denúncia desta medida e das suas implicações finais a curto/médio
prazo: a integral destruição do SNS e do direito constitucional à saúde.
No entanto, é necessário
abandonar perspectivas corporativas, demagógicas e de cedência ao populismo
fácil e afrontar problemas desta enorme gravidade, tendo a coragem de afirmar
que este é o caminho que conduzirá à destruição do SNS, e ainda por cima em
gestação a nível do partido que há umas décadas atrás teve a responsabilidade
de estabelecer as suas bases programáticas e legais.
As graves implicações desta
medida são de tal forma previstas pela actual equipa ministerial da saúde que
esta não foi capaz de assumir a sua divulgação e delegou tal anúncio em
deputados do grupo parlamentar do PS.
É que este alargamento da ADSE
torna agora ainda mais perceptível as tais ideias do “mercado interno”, da livre
escolha dos hospitais pelos doentes e da definição de um conjunto de
indicadores para estabelecer os níveis de financiamento penalizadores para
algumas destas unidades de saúde, divulgadas pelas instâncias do Ministério da
Saúde.
São todas peças que encaixam na
perfeição e que são lamentavelmente recuperadas do catecismo ideológico
neoliberal da Thatcher e do Blair que conduziu à destruição do NHS britânico.
Não defendo uma posição de
extinguir por decreto, de um dia para o outro, a ADSE e os outros subsistemas,
apesar de considerar que se tratam de duplas tributações para a saúde e de não
fazerem sentido quando existe um SNS geral, universal e tendencialmente
gratuito, pelo menos no texto constitucional.
No entanto, se o projecto deste
Governo não é o que parece, então torna-se inadiável que a ADSE passe a dispor
de uma gestão transparente e sujeita ao plebiscito dos trabalhadores da
Administração Pública, com a inclusão de representantes sindicais nos seus
órgãos de gestão.
Não se trata, também, de defender
concepções que neguem os devidos espaços de acção às entidades privadas, mas
aplicar um princípio de que dinheiros públicos devem ser canalizados para os
serviços públicos e dinheiros privados para as entidades privadas. Quem quiser
defender delimitação de sectores com o mínimo de seriedade política sabe que
esta é a pedra basilar de tal processo. Independentemente das colorações de
quem apresenta uma qualquer medida, o que importa é avaliar os seus impactos e
as consequências dela resultantes.
Ora, quando se pretende dar mais
um passo, a que outros inevitavelmente se seguirão, para alargar o universo da
ADSE e, por conseguinte, a sua contribuição para as entidades privadas,
enquanto é negado o adequado financiamento à revitalização e modernização do SNS
e dos seus serviços, é a destruição do SNS que está em desenvolvimento, numa
acção demolidora sem precedentes.
O objectivo é concretizar mais
uma etapa na criação das premissas de um seguro obrigatório de saúde que depois
proclame como facto consumado o fim do SNS.
Não demorará muito tempo para que
certos sectores de opinião verifiquem o logro em que se meteram, provavelmente
já tarde demais. Esta medida da ADSE vem confirmar que existe mesmo um fantasma
que continua a esvoaçar dentro do Ministério da Saúde, independentemente da
mudança de coloração partidária.
Termino com a minha declaração de
interesses: sou beneficiário da ADSE !!! 29/2/2016
Mário Jorge Neves
Médico,
Dirigente Sindical
29/2/2016
***«»***
Comentário do editor:
A ADSE está a transformar-se num
verdadeiro cavalo de Tróia, para partir ao assalto e à destruição do Serviço
Nacional de Saúde.
Chamo a atenção para um artigo do
mesmo autor, publicado aqui, e que lança um esclarecido entendimento sobre a
estratégia de longo prazo, do actual titular do Ministério da Saúde, para, de
uma forma encapotada, privatizar os segmentos lucrativos do SNS, à custa dos dinheiros públicos.
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