RÉVEILLON
Cada ano que passa te apetece
voltar atrás, fingir que ainda conheces
esse músculo exausto mas sempre literário
a que outros como tu insistem em chamar
o coração.
Quando bebes a taça de champagne
ou mastigas sem muita convicção
as doze passas tão protocolares,
é esse o teu desejo: que o próximo ano
te ensine a escutar outra vez,
pra lá das gargalhadas ou dos bip-bips
das mensagens que chegam via telemóvel,
o som das doze badaladas
desse relógio agora quase morto
mas ainda dentro do teu peito.
Cada ano que passa digeres
doze passas iguais às da infância
como se os anos não passassem
e o coração obedecesse ainda
aos primeiros desejos - mas repara
que é apenas um músculo e está cansado:
sístoles e diástoles hão-de repetir-se
talvez por mais uns anos
atravessando réveillons como este
até não haver nada para desejares.
Fernando Pinto do Amaral,
"Pena Suspensa"
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