Tríptico doméstico no fluxo do Tempo...
Senta-te aqui no sofá
Não deixemos
Há dias em que anoitece
Mas se a impertinente demora
3
Apetece-me saltar
E a cabeça da medusa
E lá continuo eu, alegre,
1
No dia em que bateste
à porta, eu não estava.
Tinha-me ido visitar
lá para as bandas do fim
ou talvez te tivesses
enganado na porta
pois dificilmente
me acharás em mim.
Hoje tiveste sorte
não me apeteceu sair
encontras-me é, assim,
de robe, despenteada
não é este o modo
de receber, bem sei...
mas há dias em que
outra não sei parecer.
Entra e não repares
na grande desarrumação
arrumava-me por dentro
tenho ainda as ideias
espalhadas pelo chão.
Sê gentil e vê se me ajudas
Vê se reconheces os pedaços
Que são meus
Há tanta gente
a impor-me ideias
que já não distingo o que é meu.
Não há pão
para pôr na mesa
nada tenho
para te oferecer
consumi toda a água
que havia
na sede de sobreviver
Senta-te aqui no sofá
Ainda há partes de
Mim, estofadas.
Podem é as cortinas
Estar desbotadas
Por força de tanto as ter
Cerradas...
Sim, abrirei as janelas
Sim, deixarei a porta no trinco
Espanejarei a sala de visitas e
colocarei flores na jarra.
Sempre que quiseres vem visitar-me
Estarei por aqui
Mas quando o fizeres
Traz água, por favor...
Não deixemos
as flores
morrer.
2
Há muito que a Tristeza
habita em mim
e eu sem a querer receber
empurro-a pelas escadas
esmago-a contra os muros
da minha muito lúcida razão.
Ela resiste, tristonha,
Cola-se à alma rasgada
Alimenta-se do meu sofrer
E em cada sorriso qu' ensaio
Espreita
para me escarnecer
Há dias em que anoitece
Logo desde o amanhecer
Terei de lhe enviar um convite
Gentil, para Ela perceber
Qu'eu não fui feita para ser triste
Por isso não a posso receber
Mas se a impertinente demora
Poderá o dia chegar
Em que a tristeza de fora
Se instale de vez em mim
E não mais se queira mudar.
3
Apetece-me ser
Irreverente
Inconsequente
Imprudente
Viver a vida com furor
Mesmo arriscando à dor
Apetece-me saltar
Nas poças da vida
Perturbando a paz
Do gato da vizinha
- Não, minha senhora
Não me vou portar bem!
Esse fato não me quadra
Nem a hipocrisia da cor
Me convém!
E a cabeça da medusa
Desapareceu, confusa
Despida da maledicência
Já pouco poder tem.
E lá continuo eu, alegre,
Saltando nas poças da vida
E há momentos até
Que o gato da vizinha
Vem saltitar a meu pé.
Fátima Inácio Gomes
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