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sábado, 28 de maio de 2011

Conto: Lar de putas (revisitado) - por Pastor Flores


Lar de putas (revisitado)



Nas casas de putas sentia-me sempre como se estivesse em casa. O pior era sempre ter odiado estar em casa. Seria fácil dizer que me sentia nela como se estivesse numa casa de putas. Mas não era verdade. Era mais como se não sentisse nada.
Onde sentia alguma coisa de verdadeiro era na casa da Madame L., a dona do meu lar de putas favorito. Raro era o dia em que não lá ia, nem que fosse para me sentar um pouco na sala de espera, naqueles sofás de veludo dos anos oitenta, a ver telenovelas brasileiras com rameiras de todas as nacionalidades.
Claro está que eu tinha por lá uma namorada. Saía-me bem cara. Apesar de manter intacto o sentido do ridículo, apurado por muitos anos de gim puro em noites impuras, estou certo de que ela apreciava a minha companhia.
Sorria sempre que me via.
- Oi! Estás por cá hoje? Sempre vieste? E eu ia sempre. Estava sempre por lá. Quando estava mais alegre, tratava-me por amor. E eu dizia-lhe que um dia casaríamos os dois, mas ela nunca alimentava essas brincadeiras.
Não só os putanheiros têm códigos. As putas também têm. E a primeira delas é nunca casar com putanheiros. O nome dela era Cyndie. Era com ela que eu gastava os meus princípios de noite e finais de ordenado. Ia sempre com ela, assim ela não estivesse ocupada. Mas, por vezes, ela estava mesmo ocupada e eu tinha que voltar ao sofá e às novelas brasileiras, acompanhado pelas outras putas em espera e pela Madame L., com quem trocava as conversas mais familiares.
Uma certa vez, porém, a Cyndie não estava disponível por ter ido para o quarto principal com três japoneses. Três japoneses. Não sei se foi da falta do gim, mas aquilo bateu-me. Incomodou-me. Senti verdadeiros ciúmes e reconheci-me num papel meu já quase esquecido. Era tudo familiar para mim. Mas, ainda assim, consegui domesticar os sentimentos e manter-me focado.
Para me vingar, resolvi traí-la também. Fui com uma das suas melhores amigas. Como não gosto de incomodar, esperei até que acabasse a telenovela e fui com ela para o quarto dos fundos, ouvindo risos a quatro, ao passar pelo quarto principal.
Podem gozar, mas não fui capaz de fazer mais do que falar. A privação do gim sempre me deu para falar. E aparentemente também me deu para a emoção, porque dei comigo a chorar. Ela ouviu-me por respeito, pois eu não era um qualquer por ali, mas nada tinha para dizer. Não fiquei sequer meia hora e saí cá para fora.
No quarto principal não se ouvia nada, agora. Abrandei o passo ao passar por ele e apurei os ouvidos. Nada. Silêncio.O pior foi depois, quando fui pagar. Sim, eu tinha regalias especiais por jogar em casa, podia pagar no fim e não no início. No fundo era como as relações normais entre namorados.
Só que nesse dia, entretanto virado noite, esse privilégio transformou-se num problema. O cartão multibanco deu de si. Não deu dinheiro. E eu já tinha consumido o que lá tinha ido consumir, ainda que, neste caso, sem qualquer consumação.
Disfarcei, dizendo que não era por falta de dinheiro. Era por causa de tudo, menos por falta de dinheiro. Era por culpa dos bancos, da crise económica mundial, do subprime, mas não por falta de dinheiro. É que a segunda regra das putas é muito clara: não dar crédito aos putanheiros que não tenham dinheiro.
Mas a Madame L. não se impressionou. Essa é a terceira regra das putas. Nunca se impressionarem. Deu-me duas opções. Ou ia, com alguma das suas putas levantar dinheiro, ou deixava lá algum documento para servir de garantia de que voltava, depois de levantar dinheiro. É bom ter opções. O mal é quando não tens opções. Quando tens opções tens tudo. Assim tenhas dinheiro.
Procurei pois alegar, que era um cliente habitual, recorrendo a uma intimidade que ela parecia desconhecer. A frieza do discurso dela fez-me perceber que não era a primeira vez que ela o aplicava. Não era propriamente virgem neste tipo de situação. E tesos entesados é que não faltam neste mundo de gajos marados e sem lar.
- Mas eu alguma vez deixei de cá vir? - perguntei-lhe, pensando que, talvez, desta feita, não voltasse mesmo, porque não tinha já dinheiro na conta, nem crédito no cartão. Mas ela não me passou cartão nem me deu crédito, também.
Havia uma certa coerência em toda a situação, reconheço.
- É como te digo! Tens duas opções. E nem é por mim. São as regras da casa. E daqui não sais sem pagar - disse a Madame L., seca e fria como as suas próprias peles.
Era assim que me tratavam, logo ali, logo em casa? E foi então que lhe disse:
- O pior é alguém convencer-se de que está em casa e depois alguém o lembrar de que não está! Aí a Madame L. voltou a sorrir e disse-me que eu podia não estar em casa, mas que, se cumprisse as regras, seria sempre muito bem-vindo.

Pastor Flores, In Nunca Nada Ninguém