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Já não estava habituado o ouvir, de personalidades a desempenhar funções em cargos públicos importantes, declarações não alinhadas com as posições do governo. José Sócrates, com a sua pulsão autoritária, secou tudo à sua volta, empobrecendo a expressão de um discurso político livre e diversificado, que rasgasse outros horizontes e caminhos na sociedade portuguesa. Instituiu-se o pensamento único, que não podia divergir, no essencial, do pensamento do chefe. A liberdade de pensamento e de crítica foi remetida para a oposição, que, na assumpção da divergência, era sempre acusada de não querer defender os interesses do país. O deserto de ideias é enorme na área do poder e nas suas múltiplas adjacências. Todos debitam os mesmos argumentos a propósito dos assuntos da governança, num monocórdico e enfadonho ritmo de cassete.
Congratulo-me com as excepções, embora muito raras. E uma delas, é a do novo governador do Banco de Portugal, que, de uma forma serena e inteligente, começou a partir a louça. Há dias, foi a sua declaração corajosa de admitir que o país já estava em recessão. Do lado dos acólitos do governo, veio imediatamente a resposta, em forma de asserção cáustica e corrosiva, de que só se poderia falar em recessão técnica, após a ocorrência de crescimento negativo em dois trimestres consecutivos, como se o economista Carlos Costa não conhecesse essa definição standardizada da ciência económica. O que Carlos Costa pretendeu dizer, e que eu subscrevo, é que, pelos indicadores já conhecidos actualmente e pelo contexto envolvente, é de prever, com toda a probabilidade, aquele cenário recessivo. Olhando para os indicadores disponíveis, qualquer economista, não compremetido com o pensamento único do sistema, chega facilmente à conclusão de que o aumento das exportações, que não é elástico, não vai compensar a previsível diminuição do consumo, a estagnação do investimento e o aumento das importações (as classes ricas, que não foram afectadas pela crise, aproveitam precisamente este ambiente de crise internacional para comprarem ainda mais bens de luxo), o que vem desequilibrar negativamente a comparação do crescimento económico com os períodos de referência do passado.
Mais recentemente, Carlos Costa não se inibiu de dar uma brilhante lição de economia numa sessão de atribuição de prémios na Universidade Nova de Lisboa. Disse Carlos Costa: "Portugal tem um problema de desenvolvimento a prazo e sustentado", para, a seguir, apontar os argumentos que lhe sustentam esta afirmação, "Portugal tem um défice de produtividade, um desnível de rendimento per capita e um desnível de desemprego, superior à taxa natural de desemprego em Portugal e face à média europeia". As orelhas de José Sócrates e as do seu ministro da Finanças deveriam ter ficado a arder, quando leram estas palavras do governador do Banco de Portugal.
Uma coisa é crescimento e outra coisa é desenvolvimento sustentado. E toda a política económica (ou a falta dela) deste governo, preocupado apenas com o curto prazo e com a contabilização de umas décimas a mais ou a menos, não se encontra vocacionada para promover o desenvolvimento sustentado. O desenvolvimento sustentado exige o lançamento de ambiciosas políticas de fundo, verdadeiramente estruturantes, e que passam pela agilização institucional, por reformas coerentes e racionais, pela concepção de políticas na área da Educação, que formem uma massa crítica de excelência, e, acima de tudo, pelo desenvolvimento de uma forma superior de cidadania, onde a equidade, a responsabilidade, a condenação da corrupção, do nepotismo e do favoritismo político, e a existência de uma justiça célere, imparcial e rigorosa, sejam valores a desenvolver e a enraizar na sociedade portuguesa. Os governos de José Sócrates são a antítese disto tudo. Olhemos para as sociedades nórdicas, que também não têm petróleo no seu subsolo (uma forma de crescer sem desenvolvimento, como acontece nos países árabes), e façamos humildemente a comparação. Com José Sócrates, que só é brilhante na oratória estéril e inútil, o país afastou-se desse paradigma para se aproximar mais do perfil de um país do norte de África.
E foi isso que, diplomaticamente, o governador do Banco de Portugal pretendeu dizer.
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