Pauliteiros de Miranda
Uma preciosidade etnográfica, do planalto mirandês,
que mergulha na profundidade do tempo histórico.
A tese dominante situa esta coreografia e
respectivos adereços na época da romanização da Península Ibérica. A
proximidade da cidade de Leon, onde ficou aquartelada, durante muitos anos, uma
legião romana, teria inspirado os habitantes do planalto mirandês, que
adoptaram para as suas danças os ritmos marciais dos soldados do império, assim
como integraram, na sua indumentária, alguns elementos figurativos do seu
fardamento, como é o caso do saiote. O facto da dança dos pauliteiros ser
executada apenas por homens dá consistência a esta tese.
Há, no entanto, quem sustente, que a coreografia
e a utilização dos paulitos, seriam
uma forma de adestramento do jogo do pau, um jogo utilizado como arma de defesa
pessoal e de uma grande eficácia, que, por aquelas bandas, teria surgido em
épocas remotas, tendo sido mantido actuante e vivo, até ao século vinte, nas
zonas rurais do nordeste transmontano. Um homem só, com um pau, manuseado com
uma certa técnica, e que necessitava de uma grande agilidade, semeava a
confusão numa feira ou numa romaria, rachando cabeças e partindo costelas a
quem se atravessasse à sua frente. Camilo Castelo Branco fixou episódios destas
lutas em algumas das suas novelas.
O meu bisavô materno, com o seu pau de
castanheiro, bem podado nos nódulos, desfez de uma assentada uma feira de gado
em Carrazeda de Ansiães, devido a um desentendimento, a propósito de um boi
desencabrestado, a quem ele, através de uma pega de caras, torceu o pescoço,
pelos cornos, matando-o. O dono do boi queria ser ressarcido, e o meu bisavô,
que tinha a consciência de ter evitado, com a sua coragem e a sua força de
gigante, maiores danos entre os feirantes, que entraram em pânico com as
arremetidas violentas do boi à solta, e sentindo-se injustiçado e mal
agradecido, mandou-lhe uma estocada no toutiço, deixando-o pendurado entre a
vida e a morte. Vieram os do lugar do dono do boi medir forças com ele, em
defesa da honra e do amigo, e o meu bisavô, sem pedir licença, varreu-os a eito
com o varapau, numa luta violenta que alastrou aos que tomaram partido entre as
partes, e provocando assim um sobressalto na multidão, que se pôs em fuga
precipitada, largando o gado. A confusão foi muita e o terreiro ficou deserto,
apenas com gente a sangrar e a gritar de dores e a implorar socorro à senhora
dos Remédios.
Na Carrapatosa, a sua aldeia, o meu bisavô
entrou na lenda. Ainda o conheci, já mirradinho pela velhice, quase centenária,
ao ponto de já não se lembrar deste episódio.
Outro elemento a destacar no folclore mirandês,
é a adopção, a nível instrumental, da gaita de foles, que se generalizou pela
Galiza e por todo o norte de Portugal. A maioria dos estudiosos, marcaram-lhe a
ascendência ao tempo dos celtas, povo que se fixou e se fundiu com os nativos
iberos, deixando-nos por herança a sua cultura castreja, ainda bem expressa em
muitos vocábulos na língua portuguesa e nas manifestações religiosas e
festivas, que o cristianismo habilmente adoptou, como é o caso das romarias aos
santos e padroeiros, venerados nas capelas dos cabeços dos montes.
Outros autores, contestando a tese da origem
céltica da gaita de foles, situam a sua invenção no norte de África. Mas,
ligando as pontes, todos concordam em aceitar o seu primitivo aparecimento
entre as comunidades de pastores, nos finais do neolítico. Assim aconteceu
também com o pau mirandês. Teriam sido as comunidades primitivas de pastores a
inventá-lo e a adoptá-lo como instrumento para a condução dos rebanhos e,
posteriormente, como arma de defesa pessoal. Em Miranda do Douro, devido ao
isolamento e à sua profunda interioridade, o jogo do pau resistiu até aos
nossos dias, assim como a dança dos pauliteiros. Ambas as manifestações
etnográficas estiveram ameaçadas de extinção, no início da década de sessenta,
do século passado, devido à emigração massiva da população mais jovem,
ameaçando assim quebrar-se a corrente da sucessão geracional desta grande
manifestação da cultura popular, que é, sem dúvida, a herança mais antiga do
folclore português, o que lhe confere um valor cultural inestimável. Mas um
grupo de jovens mirandeses, orgulhosos da sua cultura multissecular, e através
de um pujante movimento associativo, restauraram este valioso espólio, para
efeitos lúdicos e festivos, preservando assim a sua memória.
Alexandre
de Castro
2010 12 26