A leitura do programa do PSD relativo ao sector da saúde permite verificar que há uma perspectiva assumida de proceder à liquidação integral do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Ao longo do seu texto não existe uma única referência ao SNS e às carreiras dos profissionais de saúde, havendo uma clara recuperação dos conceitos e da terminologia que presidiram à desastrosa reforma empreendida no final da década de 1980 por Thatcher na Grã-Bretanha e que conduziu à destruição do NHS britânico, até aí considerado como um modelo internacional de garantia da universalidade de cuidados de saúde.
A “liberdade de escolha pelo utente… dentro ou fora do sistema público”, “aumentando a competição e, consequentemente, a qualidade dos serviços prestados”, “uma separação funcional, e porventura orgânica, entre o financiamento, a prestação e a regulação da saúde que permita simultaneamente a maior abertura ao mercado concorrencial…” e o “retomar outras parcerias público-privadas”, são conhecidos conceitos que enquadraram a política do governo conservador de Thatcher e que, por sua vez, caracterizam desde há décadas o sistema de saúde americano.
Estes eufemismos pretendem, tal como já aconteceu no passado, esconder da opinião pública um objectivo bem definido e de consequências desastrosas que é a destruição gradual dos serviços públicos de saúde e a transformação deste direito constitucional num qualquer bem de consumo dependente da capacidade económica de cada cidadão, ou seja, quem tem dinheiro paga os cuidados de saúde que necessita e quem não o tem fica abandonado à evolução natural da doença.
Estas propostas mostram que a actual direcção do PSD não aprendeu nada com a actual e preocupante crise internacional, ao insistir em modelos que, de forma inquestionável, estão na sua origem.
É surpreendente que no nosso país sejam apresentadas estas propostas ao mesmo tempo que no país onde este modelo impera há décadas, o seu presidente, Barack Obama, esteja a desenvolver esforços para proceder à sua alteração no sentido de criar um sistema universal de cuidados de saúde, de modo a impedir que continue a crescer o número dos actuais 50 milhões de americanos que não têm acesso a quaisquer serviços de saúde.
O conceito apresentado nesse programa de separação funcional e orgânica entre o financiamento e a prestação constitui o elemento basilar que tem presidido em vários países à efectiva e integral privatização dos serviços públicos de saúde e à transformação deste direito humano e civilizacional num negócio a favor de grandes consórcios privados.
Quando esse programa estabelece que “reavaliaremos a possibilidade de celebrar novamente acordos de gestão de serviços de saúde com entidades do sector social ou do sector privado, bem como de retomar outras parcerias público-privadas”, estamos perante um novo facto clarificador das efectivas preocupações comerciais desta abordagem.
Depois do falhanço da experiência do acordo de gestão privada do Hospital Amadora/Sintra que levou à sua não renovação e consequente retorno à gestão pública, a actual direcção do PSD insiste neste modelo e até pretende alargá-lo.
Por outro lado, a posição assumida de retomar outras parcerias público-privadas ignora completamente a experiência existente na Grã-Bretanha desde há mais de 10 anos, onde este modelo tem conduzido a resultados desastrosos e a cortes sucessivos nos serviços prestados aos respectivos cidadãos.
O programa global da actual direcção do PSD aparece assumidamente subordinado à velha máxima do “menos Estado”, mas esconde que todos estes conceitos que apresenta só são viabilizados à custa dos dinheiros públicos.
Então, o “menos Estado” é para quem? Para os cidadãos ou para os interesses privados que são viabilizados pelo dinheiro dos contribuintes?
Relativamente à suposta “liberdade de escolha”, quem não tem recursos para pagar integralmente os cuidados de saúde de que necessita tem liberdade de escolher o quê?
Além disso, essa liberdade de escolha para outros cidadãos nunca esteve em causa no nosso país.
O relatório mundial da OMS sobre os sistemas de saúde referiu que em Portugal, em 2000, as despesas públicas de saúde no total das despesas nacionais de saúde eram de 57,5%, enquanto que, por exemplo, na Alemanha eram de 77,5%, na Bélgica de 83,2%, na França de 76,9% e na Suécia de 78%.
Neste contexto, é possível verificar que a existência do SNS no nosso país nunca foi sinónimo de qualquer perspectiva estatizante e que as pessoas que têm maiores recursos económicos sempre puderam escolher os serviços onde pretendem ser tratados
Assim, o que significa em termos práticos e objectivos a consigna neoliberal de “menos Estado”?
Naturalmente, que o ainda “menos Estado” do que estes números revelam seria a destruição integral do SNS.
É curioso que estes círculos ideológicos clamem por “menos Estado” quando se trata de assegurar a viabilização dos negócios privados, mas quando estão confrontados com os resultados desastrosos da sua gestão cheguem a ficar roucos de tanto apelar ao Estado para que evite a sua falência, como se tem assistido em vários países, incluindo o nosso, com múltiplas entidades bancárias e seguradoras.
Por último, uma referência à medida proposta no programa sobre “ aumentar a eficiência e reduzir o tempo médio em lista de espera…”.
É até irónico que apareça esta medida depois daquilo que foi a gestão das listas de espera para as cirurgias do governo anterior pela acção do então ministro Luís Filipe Pereira, que eliminou o programa de recuperação destas listas e substitui-o pelos chamados “vales-cirurgia”.
O resultado prático desta medida foi o contínuo agravamento destas listas e a criação destes vales, com o objectivo de encaminhar preferencialmente os doentes para as entidades privadas, nada resolveu.
Assim, a curto prazo, os eleitores terão a palavra decisiva em torno desta importante e crucial matéria: ou optam pela manutenção do direito constitucional à saúde corporizado pelo SNS ou aceitam que a sua saúde seja transformada numa mercadoria para viabilizar os negócios privados daqueles para quem a vida humana nada representa.
Mário Jorge Neves,
médico
Nota do editor: É com muito prazer que o Alpendre da Lua publica este importante texto sobre o Serviço Nacional de Saúde, da autoria do médico Dr. Mário Jorge Neves, um homem que ao longo da sua vida tem pugnado pela defesa intransigente deste pilar importante do ideário da revolução de Abril.
A oportunidade desta publicação tem a sua plena justificação, em função das ameaças que se avizinham, por parte das forças políticas da direita, que, há muito tempo, sonham com a privatização dos sectores da saúde mais rentáveis, ao mesmo tempo que manifestam a intenção espúria de remeter o Serviço Nacional de Saúde para a condição de uma entidade pública, destinada à prestação de serviços mínimos.
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