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sábado, 14 de fevereiro de 2015

Crónica dos dias contados [a propósito das homenagens a Humberto Delgado]



Crónica dos dias contados
[a propósito das homenagens a Humberto Delgado]

Eu tinha apenas catorze anos de idade, quando vi pela primeira vez o General Sem Medo. Foi em Lamego, cidade por onde passou, a caminho de Viseu, onde se realizou um comício da sua candidatura à Presidência da República. Juntamente, com outra malta do liceu, fui assistir à sua chegada, ao Largo dos Combatentes da Primeira Guerra Mundial, onde colocou um ramo de flores na base do imponente monumento ao Soldado Desconhecido. Já não me lembro bem se ele apareceu fardado e se teve direito a uma Guarda de Honra, formada por militares do Regimento de Infantaria Nº 9, aquartelado na cidade. Lembro-me sim, da presença de uma delegação oficial daquela instituição militar, composta pelo comandante da unidade e por mais alguns oficiais de elevada patente, que envergavam o uniforme nº1, sinal da importância do ato, no cânone militar. Tratava-se de um general…
Percebeu-se o embaraço do comandante do regimento, quando, depois da continência devida e de um cumprimento de mão, conversou brevemente com Humberto Delgado. A medo, alguns populares bateram palmas. O Medo!... É verdade, o medo!.. Medo de ser preso, medo de perder o emprego, caso se tratasse de funcionários do Estado. E foi esse mesmo justificado medo que levou algumas pessoas a não se exporem naquela receção, entre elas alguns notáveis da cidade, republicanos oposicionistas de longa data e oposicionistas recentes, que perceberam ser Delgado o homem certo para enfrentar a soberba do sinistro Salazar, perceção esta que se formou, a partir do momento em que o general, em resposta a uma pergunta de um jornalista, na conferência de imprensa de apresentação da sua candidatura, no café Gelo, em Lisboa, lançou para o ar aquela frase assassina, em relação ao ditador. “Obviamente, demito-o”.
Foi a primeira vez que Salazar caiu da cadeira, pois aquela frase era uma afronta, que ele sentiu para além do mundo cinzento da política. Foi o seu orgulho, que ficou ferido de morte. De tal forma, que se vingou ferozmente, dando ordem à PIDE para assassinar o general.
Aquele grupo de oposicionistas, para fugir à vigilância dos esbirros, deslocou-se de automóvel, pela estrada que liga Lamego a Viseu, para um sítio previamente combinado, antes de se chegar a Castro D’ Aire, e tendo aí esperado o General Sem Medo, para o abraçar e lhe manifestar o seu indefectível apoio. Num desses abraços, é apanhado o Dr. Abrantes de Cunha, reitor do liceu e meu professor de Português, professor que eu admirei muito, pois foi pela sua ação pedagógica e didática, que eu aprendi a Gramática e os fundamentos da Literatura Portuguesa. Mais tarde vim a reencontrá-lo no Casino Estoril.
A fotografia daquele fatídico abraço ao general Humberto Delgado, tirada por um fotógrafo profissional da cidade, que a expôs, juntamente com outras, na montra da sua loja, eriçou imediatamente os esbirros, que rapidamente a retiraram, tendo-a guardado como prova do delito. Passados poucos dias, o Dr Abrantes da Cunha era irradiado. Foi demitido das funções de reitor e foi transferido para o liceu da Covilhã.
Este episódio foi o acontecimento mais doloroso, que eu relatei no meu romance, “O Bando do Liceu”, um romance que me deu um grande prazer em o escrever.

4 comentários:

O Puma disse...

Boa memória e partilha

Alexandre de Castro disse...

Já me começa a faltar, Puma. Já não me recordo se, na receção ao General Sem Medo, havia ou não tropas em formatura, para a respetiva guarda de honra.
Obrigado.

maria helena disse...

Apesar de ter lido o teu belo livro«O Bando do Liceu» já não me lembrava do episódio da transferência do reitor do liceu.É importante relembrar os constrangimentos do antes do 25 de Abril, pois há muitas pessoas que já se esqueceram desse passado hediondo.
mana

Alexandre de Castro disse...

Obrigado, mana. Beijinhos.