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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A Reabilitação de Caim (cont.) - por Gertrudes da Silva


A REABILITAÇÃO DE CAIM (Cont.)


Já li. E mais depressa do que poderia imaginar. O que, em si, alguma coisa quererá dizer. Não sei é o que pensar. E ainda menos o que dizer. É que ao longo da interessante e interessada leitura não fui sobressaltado por nenhum grito de alerta, não peneirei nenhuma mensagem com carácter de urgência nem senti que me estivessem a segredar ao ouvido um aviso qualquer. E, no entanto, li este livro mais depressa do que qualquer outro, e a razão não parece estar no seu reduzido tamanho. Se calhar, foi por gostar tanto como gosto da escrita deste autor. E gosto mesmo.
Boas razões há-de ter Saramago para afirmar, como ainda ontem lhe ouvi dizer, que num romance, tal como hoje ele concebe este género literário, haverá aí uns 30% de história/estória/enredo e tudo o resto, à imagem do que acontece no corpo humano com a água, é linguagem. E é aí, na linguagem, com a sua tão singular pontuação, ou falta dela, que ele é um exímio artista, a ombrear com as suas excepcionais qualidades, não me canso de o dizer, de arquitecto de obras literárias. Um mestre, para ser mais exacto na formulação daquilo que neste aspecto penso.
Mas, e essa é a outra face da medalha, da entusiasmada e talvez por isso um pouco apressada leitura que acabei de fazer do “Caim”, como mais atrás referi, não colhi nenhum grito, mensagem urgente ou aviso sério. À primeira vista – e é a única que por enquanto eu tenho – não descortinei ali nenhum propósito, a não ser o da arte pela arte de imaginar e narrar.
Não haverá propósito, mas parece haver uma perfeita identificação do autor com a personagem principal que, de vítima se transforma em carrasco do senhor, o que em si não tem nada de mal, nem tinha que ter se este caim e este abel forem encarados como as duas faces da moeda de cada um de nós. E nesse propósito, se de propósito se trata, é simplesmente arrasador, uma raiva desmedida, a deambular por esse mundo fora, montada num burro e a passar tudo a fio de espada, e de outros instrumentos igualmente duros, bem diferente, mesmo que triste, da simpática e romântica figura do D. Quixote em cima do Rocinante.
A ideia da arquitectura do romance até parece feliz e frutuosa. Revisitar o Velho Testamento na senda do que já fizera com o “O Evangelho”, montar o herói da fita num burro e levá-lo, guiado pelo instinto da simpática besta, ou pela mão do autor, ou do senhor a alguns dos lugares e episódios mais marcantes da epopeia do Povo Eleito, está uma coisa bem feita. O percurso deixa atrás de si um emaranhado de linhas quebradas, quer no tempo quer no espaço, num relato do presente que ainda agora era passado e já virou futuro. E aí está um aspecto que para pessoas como eu, que não alcançam mais do aquilo que lá vem escrito, até parece um engulho do autor que teria pensado em tudo muito bem e que depois, no decorrer da acção, se teria apercebido que para o fim em vista a narrativa nem sempre funcionava como devia ser, e vá de o narrador se intrometer no meio da intriga para fazer sinal de virar e explicar que agora vamos para o futuro que fica mesmo ali adiante e mais à frente viramos para o passado e para outro lado, intermitências que por vezes nos cortam abruptamente o encantamento em que vimos embalados. E com tantas mudanças de rumo, por vezes parece que o autor, sem disso se aperceber, nem o desejar, chega a baralhar a cabeça ao burro… e aos leitores, mormente àqueles, e tantos que haverá, que nunca leram o Livro dito Sagrado.
E que mais? Muita coisa mais haveria para dizer. Como esta de que alguma ideia deve ter tido o autor, mas não nos disse qual, quando introduziu no GPS do burro os itinerários e os destinos mais tenebrosos da longa história narrada no Livro. O mesmo já tinha feito, de algum modo, se bem que com pinceladas mais suaves e por vezes com pormenores de extraordinária beleza em “ O Evangelho”, onde, curiosamente ou não, também tomou o partido do mau ladrão, e não foi só, penso eu, por ter sido crucificado à esquerda. O que penso, e tenho de o dizer, é que um homem que já sonhou com “amanhãs que cantam”, que glorificou e cantou feitos e fantásticas realizações artísticas levadas a cabo em nome, em prol e com os olhos postos numa utopia, não devia tirar do saco e deitar fora tantas e tantas coisas maravilhosas que outros homens, artistas como ele, ao longo dos tempos foram criando, desde os simples cânticos litúrgicos às mais belas e grandiosas catedrais, e isto para falar só no que nos é mais próximo e familiar. Tome-se como exemplo a Paixão Segundo S. Mateus de J. S. Bach ou o Messias de Handel e tantos, tantos outros que poderia aqui citar, e que por certo, não, tenho a certeza que fazem vibrar as fímbrias mais íntimas da alma deste autor, seja a alma lá o que for.
E já que se falou em alma e utopias, eu continuo cá na minha, se calhar mal, de que é de utopias que se alimenta a alma dos homens. Sim, eu sei que já em tempos Saramago desferiu nas utopias uma facada que pensou ser mortal. Como pensa agora ter feito com as religiões. Ele lá sabe. Mas eu também sei que no seu admirável labor de criar beleza terá sempre à frente uma estrela qualquer. As estrelas são incontáveis, é o que afiançam. E, no entanto, há lugar para todas elas no universo, e com a garantia de que este continua em permanente expansão.
De resto, e para terminar, parece por demais evidente que as coisas sempre foram e continuam a ser como são quando metemos na fechadura da porta do entendimento do mundo a chave do poder. As pessoas, quanto mais simples e indefesas, e estas sempre foram e continuam a ser a avassaladora maioria, sempre estiveram prontas a refugiar-se debaixo da asa protectora de um qualquer senhor, deus, rei ou tirano, desde que se apresente com força e, se possível, com um grande esplendor. E como as coisas são como são, tiremos pelo menos daí a lição, temos que ver que quando se trata de horrores, que venha quem atire a primeira pedra, já que em nome do cristianismo e das ideias de um povo eleito se cometeram os crimes mais horrendos contra a humanidade, em nome dos socialismo se praticaram horrores contra a fraternidade e hoje mesmo em nome da democracia e da liberdade veja-se o que a América e os seus mais fieis apaniguados têm vindo a fazer por esse mundo fora. E, se formos a ver, acima de tudo e para além de tudo lá está a velha e sempiterna questão da luta pelo poder.
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Viseu, 03Nov2009
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Gertrudes da Silva
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Nota do editor: Na narrativa de Caim, de José Saramago, não sei o que deva destacar, se a beleza exaltante das metáforas, se aquele estilo grandiloquente do narrador omnipresente, ou se aquela capacidade em ridicularizar um deus criminoso, egoísta, assassino, homofóbico e xenófobo, tal como ele nos surge descrito, através do grandioso estilo épico do texto bíblico.
É um livro que exige uma segunda leitura, para nos podermos deter e deleitar em todos os artifícios ficcionais com que o autor nos surpreende, como é aquele genial propósito de baralhar e subverter o tempo, poder este que disputa ao próprio deus que descreve, transportando o leitor, o burro e Caim ao futuro presente, para assistirmos, revoltados, ao pungente momento do sacrifício do filho de Abraão, para depois regressar ao passado presente, quando o filho do patriarca ainda não era nascido.
Saramago apenas descurou um imperdoável pormenor, importante para o esclarecimento total da verdade. O burro que transportava Caim nunca zurrou, durante toda a narrativa. Nem por manifesto descontentamento e protesto, por também ele, sem culpa alguma, ter de carregar a condenação imposta ao seu dono, nem por prazer, quando recolhia à solidão da cavalariça e à abundância da manjedoura. Talvez Saramago considerasse esse pormenor desnecessário, já que, depois do livro publicado, outros burros zurrariam, pelo burro de Caim, tal como zurraram, embora sem razão.
O texto crítico do meu amigo, e antigo condiscípulo, Gertrudes da Silva, está à altura da grandeza do livro de Saramago, razão pela qual o felicito, ao mesmo tempo que exprimo a minha concordância com aquilo que aqui escreveu.

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