Devem ser destruídas
Germano Marques da Silva, professor catedrático de Direito Penal, tem sido o defensor desta tese. Para este conceituado penalista, o que está em causa, nas escutas telefónicas que envolvem Armando Vara e José Sócrates, "é simples: escuta não autorizada por quem de direito é prova proibida, logo não pode ser utilizada seja para o que for". Ou seja, como o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (que, segundo a lei, é quem tem competência para autorizar as gravações a conversas em que "intervenham" o primeiro-ministro) não autorizou a gravação das conversas, "e no decurso de uma escuta legalmente autorizada for interceptada uma conversa telefónica em que intervenha pessoa que goze de regime especial na intercepção das suas conversações, o procedimento é simples: o juiz que a ordenou, apaga-a".
Quem defende: Germano Marques da Silva, o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento
Quem defende: Germano Marques da Silva, o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento
Não devem ser destruídas
Primeiro em declarações ao DN, depois num artigo no jornal Público, Manuel da Costa Andrade, professor catedrático de Coimbra e uma referência em matéria de Direito Penal, considerou que o presidente do Supremo não tem competência para dar uma "ordem" a outro juiz. Uma tese também acolhida por Paulo Pinto de Albuquerque, ex-juiz e professor de Direito Penal na Universidade Católica. Ontem, num artigo de opinião no DN, este jurista foi categórico: "É nula a decisão do presidente do Supremo Tribunal de Justiça de anular e mandar destruir escutas telefónicas de conversas realizadas entre o primeiro-ministro e um suspeito, em que se indicia a prática de crimes cometidos pelo primeiro-ministro no exercício de funções". Pinto Albuquerque defendeu ainda que os cidadãos devem ter conhecimento do teor das conversas.
Quem defende: Manuel da Costa Andrade, professor catedrático de Direito Penal, Paulo Pinto de Albuquerque, professor de Direito Penal e Carlos Pinto Abreu, advogado.
Quem defende: Manuel da Costa Andrade, professor catedrático de Direito Penal, Paulo Pinto de Albuquerque, professor de Direito Penal e Carlos Pinto Abreu, advogado.
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O nosso comentário:
Em artigo recente, publicado no Alpendre da Lua, http://alpendredalua.blogspot.com/2009/11/notas-do-meu-rodape-as-armadilhas-das.html, expusemos, de uma forma sustentada e fundamentada, o nosso ponto de vista sobre a validade das escutas, efectuadas fortuitamente ao primeiro-ministro, durante a intercepção das comunicações telefónicas ao suspeito Armando Vara, no âmbito da Operação Face Oculta, assim como contrariámos a tese quanto à possibilidade de as mesmas poderem ser destruídas por ordem do presidente o Supremo Tribunal da Justiça, já que aquelas escutas pertencem exclusivamente ao processo de inquérito de Armando Vara e não a qualquer processo referente ao primeiro ministro, processo esse que, simplesmente, não existia, nem existe. Posteriormente, alguns juristas até adiantaram que o presidente do STJ não tem competência para invalidar aquelas escutas, nem para ordenar ao juiz de instrução, que as validou, a sua destruição, uma vez que a magistratura judicial não é hierarquizada, gozando cada juiz de total autonomia e independência, conferida por lei, que o impede de receber ordens seja de quem for.
Quando os mais destacados juristas divergem na interpretação de uma lei, é porque ela foi mal concebida e deficientemente estruturada e elaborada, o que é muito comum, por vezes até de uma maneira intencional, reflectindo, assim, a enorme pressão exercida sobre o legislador, pelos vários interesses instalados. E o Código de Processo Penal (CPP) em vigor não foi excepção. Juízes, magistrados do Ministério Público, advogados e o poder político, todos eles competem ao nível dos partidos preponderantes da Assembleia da República, para que a versão final reflicta os seus pontos de vista e os seus próprios interesses de classe, por vezes bem mesquinhos e egoístas. O resultado desta incontrolável pressão acaba por produzir uma manta de retalhos legislativa, à qual falta a consistência concepcional e formal e a fundamental unidade doutrinária, essenciais a qualquer lei.
Tal como afirmámos no citado artigo anterior, existe uma grave lacuna no CPP, ao nível da competência atribuída pelo legislador ao presidente do STJ, ao conferir-lhe poderes excepcionais para validar as gravações das comunicações onde intervenham o Presidente da da República, o Presidente da Assembleia da República e o primeiro ministro, assim como de determinar a destruição dos seus respectivos suportes, sem ter havido a preocupação de exigir uma justificação, mesmo que essa justificação aprioristicamente seja óbvia, e, o que é mais grave, sem proceder no espaço próprio à definição clara e inequívoca da sua natureza contextual e ao recorte formal dos procedimentos. Perante esta imperdoável omissão, que se imputa directamente ao governo anterior e à sua maioria parlamentar (absoluta), mais apostada em apressar a aprovação de um código, talhado à medida das necessidades do processo Casa Pia, do que promover o bom funcionamento e a excelência da justiça penal, é natural que a confusão se estabeleça, e que surjam variadas interpretações, contraditórias entre si, mas todas elas afirmando-se incontestáveis e subordinadas aos princípios fundamentais do Direito. Por vezes, as interpretações dos juristas são oportunisticamente orientadas pela suas convicções e interesses políticos do momento, ou pelos interesses pessoais e profissionais.
O principal erro em que estão incorrer aqueles que apenas limitam a sua posição à leitura e interpretação do artigo 11º do CCP, onde se definem genericamente as competências do presidente do STJ, incluindo aquela respeitante à validação das escutas dos titulares dos três principais órgãos do Estado, reside na sua obstinação em ignorar por completo os enunciados do capítulo IV do CPP, onde o legislador estabelece todas as regras a que devem obedecer a intercepção e gravação de comunicações de suspeitos e arguidos, sob a supervisão de um procurador. É certo que aí nada iriam encontrar que os esclarecesse em relação àquelas escutas, mas isso não lhes confere o direito de concluírem que o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro nunca poderiam, em tempo algum, ver as suas comunicações interceptadas pelo poder judicial, o que representaria uma verdadeira aberração jurídica, como passaremos a demonstrar.
Imaginemos este cenário hipotético, mas que nos serve para ilustrar o anacronismo existente. Imaginemos, por um momento, que todos os vigaristas deste país, ou um número apreciável dessa gente que pulula por aí, tinha relações amistosas com o primeiro-ministro (é proibido ver aqui uma qualquer insinuação), e que ocasionalmente lhe revelavam actividades delituosas de outros dos seus amigos (algumas centenas), e que se encontravam já sob escuta dos órgãos de polícia criminal. Ao aplicar cegamente o artigo 11º do CPP, invalidando as escutas, seria uma maneira de permitir e perpetuar a impunidade de potenciais criminosos, cujos crimes, admite-se, apenas poderiam ser descobertos através de escutas. Não acredito que o legislador tivesse promovido este obstáculo para dificultar as investigações e impedir a procura da verdade, como aconteceria se a regra se circunscrevesse na aplicação formal e linear do estipulado naquele artigo.
Por outro lado, há que reafirmar que as escutas em que foram interceptadas comunicações entre Armando Vara e José Sócrates pertencem ao processo de inquérito da Operação Face Oculta, o que impede a intromissão do presidente do STJ e do Procurador-Geral da República. Essas escutas não podem ser destruídas e, depois do despacho de pronúncia, podem ser livremente consultadas.
P.S. Já depois de termos terminado a elaboração deste artigo, apareceu no Expresso online a decisão do senhor Procurador Geral da República a determinar o arquivamento dos pedidos de certidões do juíz de instrução do processo Face Oculta, por doutamente considerar que não havia matéria probatória a imputar ao primeiro-ministro.
Estamos convictos de que este magistrado, assim como o presidente do STJ, actuaram, neste complicado processo, com o elevado sentido de responsabilidade, a que os seus elevados cargos obrigam, e que as suas decisões no âmbito judicial não foram inquinadas pelo ambiente político gerado pelo Operação Face Oculta. Esperemos convictamente que o futuro lhes venha a dar razão, para que a dimensão do escândalo não venha a envolver outros actores.
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