A última viagem
1
Não sei porquê, mas comecei insidiosamente a pressentir que a viagem naquele comboio não tinha destino nem fim.
O bilhete era uma pequena cartolina branca, de forma rectangular, sem qualquer indicação útil para o revisor, que, à moda antiga, o obliterou com um alicate, dizendo-me obrigado, mecanicamente, ao mesmo tempo que me desejava boa viagem. Mas não me respondeu, quando lhe perguntei qual era a última estação daquela linha de via estreita, percorrida, ora num sentido, ora no outro, por carruagens antigas, de bancos de madeira corridos, puxadas com visível esforço, principalmente nas subidas, por uma locomotiva alimentada a carvão, que um homem de tronco nu, e todo suado, atirava às pazadas para a devoradora fornalha.
No banco, à minha frente, ia uma compenetrada senhora, com um elegante chapéu preto na cabeça e uma renda da mesma cor a descer-lhe pelo rosto. Disse-me que ia visitar o marido, mas começou logo a ler a Bíblia, quando lhe perguntei em que localidade se encontrava o marido. No entanto, reparara que ela trazia duas alianças no dedo anelar da mão esquerda, o que indiciava, seguramente, a manifestação pública do seu estado de viuvez. Não deixei de ficar intrigado.
Adormeci, e, quando acordei, ouvindo o som do matraquear das rodas sobre os carris, que me parecia vir de muito longe, apercebi-me da ausência de árvores na paisagem que desfilava pela janela da carruagem. Era uma paisagem dominada por terra amarela, como nunca vira, e as rochas tinham uma cor avermelhada, como se fossem brasas de uma lareira. Lembrei-me da paisagem de Marte, que já vira em fotografias.
A viúva, afivelando uma postura de dignidade, e antes de sair no apeadeiro, onde o comboio estava agora parado, permitiu-se tirar o chapéu da cabeça e destapar o rosto, para dar um retoque no cabelo, e pude então reparar que se tratava de uma mulher que deveria ter sido muito bonita na sua juventude.
Pela janela da carruagem ainda vi o chefe da estação com a bandeirola debaixo do braço, mas na frontaria do edifício não existia nenhum letreiro a indicar o nome do apeadeiro. Aí, dei-me conta que estava sem referências espaciais para poder orientar-me. Não sabia onde estava. Também já perdera as referências temporais, e o meu medo era poder vir a perder as referências existenciais, e acabar por não ser capaz de responder a esta pergunta tão simples, mas tão fundamental: Quem sou eu?
O meu relógio parara, inexplicavelmente, durante a viagem, e na parede do edifício do apeadeiro também não havia nenhum relógio, que me devolvesse o ordenamento temporal. Apesar do céu não ter nuvens, não era visível a existência do Sol ou de qualquer outro astro luminoso, e assim eu também não podia reencontrar-me com os quatro pontos cardeais. E comecei a interrogar-me de onde vinha aquela claridade constante e uniforme, sem qualquer nuance na mudança de tom e que transmitia uma pesada imobilidade ao dia, que parecia ser perpétuo. Pela primeira vez, experimentei uma estranha sensação de vazio, por sentir-me sem as coordenadas do Tempo, que a alternância dos dias e das noites faculta. Progressivamente, sentia que estava a perder aquela noção íntima do Tempo, que permite situar-nos no antes e no depois e que separa com nitidez o que é passado, presente e o que é futuro.
Entretanto, o lugar deixado vago pela viúva tinha sido ocupado por um senhor gordo, todo esbaforido de calor a arrastar pela coxia uma pesada mala. Deixei que se acomodasse, depois de ter esperado que terminasse a tarefa de limpar o suor da cara e do pescoço com um lenço branco, exageradamente grande, para lhe colocar todas as inquietantes dúvidas a que me conduziram as minhas recentes cogitações sobre o Espaço, o Tempo e a Existência. Respondeu-me amavelmente que essas questões já não o preocupavam, tendo acrescentado que, para ser mais exacto, até já nem conseguia abarcar a extensão e a profundidade desses conceitos e, enigmaticamente, deixou o seguinte conselho:
- Para nos livrarmos de um vício, o melhor é arranjar outro que o substitua, mas, neste caso, é preciso ter cuidado para não ficarmos com os dois.
E sem me dar tempo que lhe pedisse uma clarificação sobre a sua afirmação, tirou do bolso interior do casaco a carteira, que abriu para me mostrar a fotografia de uma mulher ainda jovem, e que eu imediatamente associei à senhora que acabara de sair da carruagem no último apeadeiro:
- É a minha mulher – disse-me, antes que eu fizesse alguma referência.
- É a minha mulher – disse-me, antes que eu fizesse alguma referência.
- Aqui, não podemos regressar ao passado, nem podemos caminhar para o futuro, porque passado e futuro deixaram de existir. Aqui só há presente.
- Como assim? - Perguntei, intrigado.
- Transferiram-me para outro campo, uma vez que ela vinha a chegar. E isso poderia afectar a ordem estabelecida.
- Como assim? – Voltei a insistir, colocando agora na minha voz um tom imperativo, que não admitia mais subterfúgios.
- Vai compreender, quando sairmos da carruagem, no próximo apeadeiro.
- E esse é o último apeadeiro desta linha? – Perguntei, na esperança de obter uma resposta à pergunta que no início da viagem o revisor tinha ignorado.
- Tanto quanto sei, esta linha não tem fim e não há viagem de regresso, uma manobra engenhosa para esvaziar a noção do Espaço. Uma vez que eu tinha obrigatoriamente de fazer esta viagem, pediram-me para o acompanhar e de o informar das novas regras. Já lhe disse que tem de arranjar outro vício, que substitua o vício de pensar, mas deve ter muito cuidado para não ficar com dois vícios.
- Está a dizer-me que tenho de viciar-me em não pensar.
- Não!... Eu não queria dizer isso. O que é necessário é que abdique de todo o tipo de lógica e que não utilize o pensamento dialéctico.
- Mas isso equivale a renunciar ao pensamento autêntico!...
- Como queira, Mas, o meu amigo vai descobrir que esse não é o pensamento autêntico, já que através dele, não se consegue abarcar esta realidade que existe à sua volta, e que é a realidade dominante.
Encolhi-me todo no banco, parecendo um bicho-de-conta a enrolar-se sobre si mesmo. Um frio percorreu-me a espinha, o que me provocou um arrepio, que o meu interlocutor teve a oportunidade de observar.
- Não se preocupe. Vai habituar-se.
Fez-se um pequeno silêncio na carruagem, que, sem eu ter constatado antes, já ia vazia.
- Os outros passageiros? - Indaguei, alarmado.
- Já saíram todos com o comboio em andamento. Já vejo que está surpreendido, mas a lei da Física da gravitação universal não se manifesta aqui. Já vê que tem de viciar-se num outro tipo de pensamento e abandonar o que aprendeu. Não queira ficar com dois vícios. E agora eu também vou sair e nunca mais irá ver-me, embora eu continue a observá-lo, segundo as instruções que recebi. Eu, quando cheguei, também tive de fazer este percurso.
- E a sua mulher? Também vai fazer este percurso?
- Porque faz essa pergunta?
- Por nada … Por nada! Simples curiosidade, nada mais.
- Apaixonou-se por ela, durante a viagem?
- Não, não!... Apenas reparei tratar-se de uma mulher interessante.
- Talvez ela venha fazer-lhe companhia, já que ela, quando me viu, disse-me que se apaixonara por si.
- Oh!.. Não pode ser!... Está a brincar comigo!...
- Estou a falar a sério, meu caro amigo. Percebi que ela já não me aceita. E não vale a pena obrigá-la a passar a eternidade a olhar para mim com desgosto. Mas ela só virá ter consigo, quando ambos aprenderem o novo pensamento.
E o homem estendeu-me a mão, grossa e papuda. E antes de desaparecer misteriosamente, tal como fizeram antes os outros passageiros da carruagem, disse-me:
- Quando o comboio parar no apeadeiro, siga sempre as setas que estão no chão, que o conduzirão à casa do guarda.
- Está a querer dizer-me que eu vou para uma prisão?
- Não. Aqui não há prisões. Mas, agora, peço-lhe para não fazer mais perguntas. Adeus.
2
Recebi esta carta numa tarde de Agosto. Vinha numa embalagem tubular, de um material que se desagregou completamente, depois de a abrir. Não trazia remetente, e a ausência de qualquer carimbo dizia-me que não tinha chegado através do circuito normal dos correios. Não faço a mínima ideia quem seria o seu autor.
Alexandre de Castro
4 comentários:
Senti-me presa aqui, a todas as letras, a todas as palavras! A ideia de deixar de pensar, agradou-me bastante.
Vânia Cairo (da sua página do Facebook):
Vânia escreveu: "Tecnicamente, poeta, tu elaboraste com mestria o verdadeiro conto ao que tange ao espaço, tempo [cronológico e psicológico], personagens com respectivas descrições, enredo, conflito, clímax e desfecho.Quanto ao conteúdo, há presença da dialética do pensamento humano [ obviamente por meio da metáfora da vida] ...O ser humano com suas angústias, medos, incertezas, necessidades de respostas ao irrespondível, a visão da incompletude humana com toda subjetividade que a ciência ainda não explicou com precisão... Tudo isso para explicitar a verdadeira viagem da vida tão paradoxal e real : finitude homem. Parabéns, Alexandre de Castro , meu poeta/ amigo."
Joaquim Pereira da Silva: (comentário deixado no Facebook):
Joaquim Pereira da Silva disse: Não sou suficientemente eloquente, nem sequer tenho pretensões a avaliar, comentar ou adjectivar o teu conto. A única palavra que me ocorre é GOSTEI.
Maria Helena Castro Mota: (recebida por email).
Olá mano
Afinal, o passado e o futuro, será que existem? Ou é o presente que nos foge das mãos, sendo que, por ser tão célere, ...já era...!!!
O conto está muito interessante, propondo-nos algumas reflexões existenciais, para além da dicotomia espaço/tempo.
Gostei.
Jinhos
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