O meu mundo subaquático
Enquanto mastigava, a língua dançava-me na boca a enrolar a comida e, em movimentos mais elásticos, procurava apanhar aqueles resíduos dispersos que teimavam entalar-se nas comissuras e colar-se às gengivas e às bochechas. Foi num desses movimentos que a placa esquelética saltou do lugar e o gancho metálico, que se encontrava solto, por, há dias, se ter partido o dente canino de apoio, foi espetar-se na base da língua, rasando aquele veio azulado, que se vê, proeminente, quando a dobramos com a ponta virada para cima. Foi uma dor aguda, um fio de fogo a queimar-me por dentro, e imediatamente pensei que deveria ser essa a dor que os peixes sentiriam quando mordiam o anzol. E neste acidente, o gancho da placa funcionou, na realidade, como se fosse um autêntico anzol, pois quanto mais procurava libertar a língua, mais ele penetrava naqueles tecidos moles, já todos ensanguentados, o que aumentou o meu pânico. Tive de socorrer-me da mão, mas, por mais manobras que fizesse, o gancho rasgava cada vez mais a carne. Só com um valente e decidido esticão, a fazer estremecer de dor todo o meu corpo, uma dor a ressoar pelas entranhas e quase a provocar-me um desmaio, consegui arrancar o maldito gancho, que trouxe agarrado na ponta um pequeno pedaço de carne. Parecia uma minúscula amostra de um tecido destinado a uma biopsia.
A boca já era uma massa ensanguentada, a formar uma pasta mole, que cuspi com violência para o lavatório, indo, como se tivesse sido um espirro, salpicar o espelho e os azulejos brancos das paredes. O sangue saía aos borbotões daquele veio azul, que pulsava ao ritmo da dor. Fechei a boca, mas ainda tive tempo de ver no espelho os dentes raiados de sangue, como se fosse um drácula. Bochechei com a água fria da torneira, mas, cada vez mais, o sangue saía em maior quantidade. Meti na boca, por baixo da língua, um toalhete molhado, procurando fazer alguma pressão sobre o golpe para conseguir estancar as golfadas de sangue. De nada me valeu. O toalhete ficou encharcado de sangue, parecendo um molusco viscoso. Lembrei-me então de ir buscar uma pedra de gelo ao frigorífico, na esperança, tal como sempre ouvi dizer, que o frio contrai as artérias e as veias, e que é eficaz nas hemorragias.
Olhei para o espelho casualmente e comecei a ver os olhos marejados de lágrimas vermelhas a esconderem o branco da córnea. Entrei em pânico e comecei a pensar na melhor maneira de pedir socorro e ir ao hospital. O medo de morrer ali, sozinho, a esvair-me em sangue, aterrorizava-me. Durante a minha vida pensei várias vezes nas muitas maneiras de poder vir a morrer. Na cama, na rua, com um fulminante ataque de coração, num acidente de automóvel, na enfermaria de um hospital, na mesa de operações... Mas nunca pensei morrer assim, devido a uma hemorragia na língua, provocada por um golpe certeiro da ponta de um gancho de uma placa dentária esquelética.
Olhei novamente para o espelho, que já me devolvia a cor de cera do meu rosto, e meti os dedos nos ouvidos, para me certificar se também por ali perdia sangue. Foi quando eu reparei em duas protuberâncias membranosas, que começaram a crescer por detrás das orelhas. Ao apalpá-las, tive a sensação de sentir a pele escamosa de um peixe. Voltei a tocá-las, ao mesmo tempo que torcia o pescoço, para as ver melhor, e reparei que na sua parte inferior, aquelas duas protuberâncias apresentavam uma abertura, como se ali tivesse sido feito um golpe com uma navalha, tal era a perfeição do seu alinhamento rectilíneo. Fiquei intrigadíssimo com este fenómeno anatómico, de que nunca ouvira falar.
Por uns momentos, pensei que teria entrado num estado alucinatório, mas a evidência do sangue, que já me sujara a camisa de linho, e aquelas duas protuberâncias de uma cor acastanhada, como se fossem dois tumores, confirmavam-me a surpreendente realidade. Belisquei a perna, para ver se tudo aquilo não passava de um pesadelo. Olhei para o relógio, que marcava dez horas da manhã, e a essa hora eu não podia ainda estar a dormir. Aliás, lembro-mo muito bem do despertador tocar e de ter saltado da cama, assim como me lembro de estar a comer as torradas do pequeno-almoço, tendo sido nesse momento que ocorreu o acidente com o gancho da placa esquelética.
Cheguei à conclusão de que meter debaixo da língua um toalhete molhado seria a melhor maneira de evitar a saída do sangue pela boca, embora notasse que a hemorragia continuava, ao ponto de já ter utilizado meia dúzia de toalhetes, que ia deitando na tulha da roupa suja, devidamente embrulhados em tiras de papel higiénico. Depois, passei a embrulhá-los em papel de jornal, por me parecer que os isolava melhor, evitando assim manchar de sangue a outra roupa.
Resolvi também tirar a camisa, a única camisa de linho que possuía, e daí a razão de gostar muito dela e de a vestir mais vezes. E foi nesse momento que comecei a sentir falta de ar. Primeiro, julguei tratar-se de uma somatização dos sintomas da minha ansiedade, o aparecimento de uma anormalidade física, desencadeada pelo medo. Mas, já na rua, à procura de um táxi, que me transportasse ao banco de urgência, sentia que a dificuldade em respirar começava a aumentar. Tentei controlar o meu pensamento, pois sabia que quanto mais pensasse na hemorragia, mais agravava aquela sensação de falta de ar, que me obrigava a fazer inspirações profundas, para resistir melhor. Comecei a concentrar-me na imagem do peixe a morder o anzol, que me tinha surgido na casa de banho, quando tentava retirar da língua o gancho da placa esquelética. Tive de aplicar toda a minha energia mental, adquirida na prática do yoga, para esquecer a dor do ferimento e para superar a ansiedade.
Mas, quando já tinha iniciado o exercício de concentração, alarmei-me com a constatação de que os táxis vinham todos ocupados e que o trânsito fluía lentamente. Um novo alarme fez-me estremecer, ao ponto de sentir as pernas a fraquejar. Fiz as contas. Por este andar arriscava-me a morrer asfixiado, ali, no passeio, ou dentro do táxi, ensarilhado no tumulto do trânsito. Seria o cúmulo do azar, morrer ali, desamparado, com o hospital a uma centena de metros, apenas porque, inicialmente e por cautela, não quis arriscar fazer o respectivo percurso a pé. Mas foi isso que, perante a dificuldade de apanhar um táxi vazio, decidi fazer, confiante na minha capacidade de conseguir domesticar o ciclo respiratório, enquanto impunha um ritmo seguro e regular às minhas passadas. Desci a avenida e cortei para o jardim do Repuxo, para atalhar caminho, e ao olhar para a fonte, no meio do jardim, com uma enorme taça de pedra, na base, cheia de líquenes, fui acometido por uma sede intensa, ao ponto de não resistir a inclinar-me para a carrancona de pedra que deitava água por um cano enfiado na boca. Senti uma sensação agradável ao beber aquela água e receber os seus salpicos na cara. Um impulso mais, e de uma forma irresistível, enfiei a cabeça debaixo do cano. Deixei-me ficar ali, a saborear o prazer provocado pela água a correr-me pela cabeça, embora, assim de repente, aquelas duas protuberâncias, atrás das orelhas, tivessem começado a latejar. Ao incómodo motivado pela falta de hábito, começou a sobrepor-se a doce sensação da quietude do meu corpo, ao ponto de ter esquecido a dor na língua e de a respiração ter retomado o seu ritmo normal. O que me surpreendeu foi aquela sensação de habitar um corpo revigorado por novas forças, que já me vinham faltando, durante a caminhada.
Entretanto, a hemorragia continuava. Enfiei um novo toalhete debaixo da língua, e reiniciei a minha marcha, agora mais apressada, pois uma tão grande perda de sangue começava a preocupar-me. Mal iniciei a caminhada, um relâmpago atravessou-se no pensamento, iluminando um súbito pressentimento. Voltei atrás e olhei para o tanque e, para meu espanto, não vi na superfície da água vestígios de sangue, embora tivesse a certeza de que o toalhete, que tinha atirado, momentos antes, para o caixote do lixo, ali ao lado, parecesse o tal molusco avermelhado e viscoso.
Estranho, disse para mim. Tenho de falar ao médico deste pormenor, que não deverá ser insignificante, pois nunca se viu uma ferida deixar de sangrar subitamente, para depois, passados uns minutos, ser novamente necessário utilizar um toalhete para estancar o sangue. E foi a meio deste solilóquio que as protuberâncias começaram a doer-me, enquanto latejavam com mais intensidade, emitindo um som estranho, muito parecido com o som gutural, provocado pela libertação da expectoração. Estanquei a marcha, e um novo relâmpago atravessou-me a cabeça e o corpo, deixando no seu rasto uma queimadura profunda e inquietante. Uma nebulosa translúcida fixou-se nos olhos e comecei a ver os objectos, as casas e as pessoas a flutuarem no ar, numa realidade etérea, que eu não compreendia. As pessoas, lá nas alturas, em diversos patamares, adquiriam aquela postura repousada de quem vai numa escada rolante. Umas diziam-me adeus, outras faziam-me caretas e algumas insultavam-me. As crianças riam-se e atiravam-me pedras e pedaços de madeira. Até um polícia, lá do alto, que deslizava ao lado de uma velhinha, apoiada numa bengala, me ameaçou com o cassetete em punho. As pessoas já eram tantas, por cima da minha cabeça, vindas de todas as direcções, e cruzando-se umas com as outras, que eu comecei a correr desalmadamente, com o meu pensamento fixado na nebulosa esbranquiçada, que cobria os meus olhos. Pisei os canteiros do jardim, derrubando as plantas à minha passagem. Atravessei-me à frente dos carros, empurrei pessoas num passeio. Vi, finalmente um táxi livre. Filho da puta, que não apareceste, quando eras preciso, gritei, furioso, para o taxista, que travou de repente, ficando a olhar para mim com um ar aparvalhado, enquanto eu continuava aquela correria louca, assustando as pessoas, que faziam alas para me dar passagem.
Eu estava a ser guiado por aquela névoa, que me cobria os olhos, e ao passar por uma montra com vidros espelhados pude ver que eles eram grandes e redondos, cobertos por uma membrana gelatinosa, e era devido a essa membrana que eu via, de dentro de mim, a nebulosa translúcida e esbranquiçada, que me apontava o caminho a seguir. Ainda tive tempo de ver as duas protuberâncias que, entretanto, tinham incorporado as orelhas, dando ao meu rosto um aspecto espalmado.
Já uma multidão vinha no meu encalço, gritando e agitando freneticamente os braços. As pessoas, que flutuavam por cima da minha cabeça, como se fossem transportadas por uma passadeira rolante aérea, olhavam-me com um misto de desprezo e de comiseração.
A névoa já estava a indicar-me que o fim da correria estava a chegar ao fim, e, naquele momento, era o que mais ansiava, pois a respiração começava a claudicar e as pernas falhavam constantemente. Até que cheguei ao cais das colunas, depois de atravessar a grande praça ladrilhada. Veio o cheiro da maresia dilatar-me as narinas. O vento marítimo adoçava-me a cara afogueada. Ao longe, o silvo agudo dos navios, a entrarem no porto.
Parei no muro do cais, e olhei aquele lençol de água do estuário, uma lâmina espelhada a reverberar a luz do sol. Dei um salto e mergulhei na água, até ao fundo. Dejectos e mais dejectos, a carcaça enferrujada de um automóvel, cercado de peixes, muitas garrafas de vidro, botijas de gás e até um caixote escavacado com armamento militar. O rio era o vazadouro do lixo da cidade, pensei, enquanto dei um impulso ao corpo para vir à superfície e olhar pela última vez a cidade, para depois mergulhar definitivamente nas profundezas, pensando que só regressaria a terra, se um outro anzol viesse a prender-se na minha língua ou se ficasse enrolado nas malhas de uma rede de arrasto.
***
Lembro-me de começar a ver um ponto brilhante e um sussurro de vozes à minha volta, enquanto, num lento acordar, ouvia os meus gemidos e sentia fortes dores no corpo, como se um pesadelo se tratasse. Os olhos abriram-se lentamente, e movi os dedos da mão a tentar tactear a realidade, mas rapidamente fechei as pálpebras, agredido pela luz intensa e branca que vinha de um objecto em forma de disco. Julgo que, por breves momentos, voltei a adormecer, como se o corpo se recusasse a sair do limbo inconsciente, e quando voltei a abrir os olhos, vi a cara circunspecta de um homem a aproximar o seu rosto do meu, olhando-me fixamente, através de uns olhos muito azuis, enquadrados por uns óculos de aros metálicos e finos. Com uma pequena lanterna apontou-me um foco de luz para cada uma dos meus olhos, e com os dedos delicados, que eu senti frios, revirou-me as pálpebras. Como se sente, perguntou-me, com uma voz suave, que me pareceu longínqua, vinda como um eco do fundo do tempo.
E foi então que eu lhe disse que a sua cara estava a transfigurar-se lentamente, ficando cada vez mais espalmada, e parecendo-me estar a ver um peixe muito grande, de olhos líquidos esbugalhados. Levantou-se de repente e disse a alguém, que eu do meu lugar não podia ver, para me dar outra injecção e deixar-me amarrado à cama.
Adormeci novamente, julgando que estava no fundo do mar.
Alexandre de Castro
Lisboa, Abril de 2011
3 comentários:
Fantástico... nos dois sentidos.
"Pela boca morre o peixe". O provérbio está errado, são mais os que podem vir a morrer por outras causas...
Que grande peripécia!
Obrigado ao anónimo e ao Graza.
Enviar um comentário