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domingo, 2 de maio de 2010

Notas do meu rodapé: Rebentou a guerra de Portugal contra os especuladores internacionais!..


Os clarins e os tambores de guerra já se ouvem por toda a parte. Portugal está a ser atacado por perigosos bandos de especuladores internacionais, apostados em esbulhar as riquezas do país. Governantes, comentadores encartados e escrevinhadores avulsos dos blogues alinhados desataram numa gritaria medonha e histriónica, a convocar as tropas para defender a Pátria em perigo. Até Manuel Alegre já está compor um poema, a invocar os Afonsos, os Albuquerques, os Gamas e até aquele seu antepassado do tempo da heróica Guerra Civil do século XIX. A caricata situação lembra-me outros episódios passados, requentados por um patriotismo serôdio, como foi aquele de lançar a ideia de uma subscrição pública para comprar um porta-aviões, quando do assalto ao paquete de Santa Maria, e que não passou de mais uma bravata, a denunciar a nossa impotência.
A imagem serve para ilustar o ridículo da grande campanha de intoxicação que está a ser montada pelo poder político para desviar a atenção dos portugueses daquilo que é essencial para compreender a grave situação económica e financeira do país.
Através do discurso político, começou a difundir-se a falsa ideia de que os especuladores eram pessoas marginais ao sistema, que, tal como uma quadrilha de salteadores, se organizavam para, através de maquievélicos planos, ganharem dinheiro à custa da fragilidade das moedas e das economias de países em dificuldades, e deixando no ar, subliminarmente, que a especulação financeira é uma prática a todos os títulos condenável. É fácil, através desta asserção tendencialmente aforística, despertar na opinião pública um sentimento primário de repulsa e de revolta. No entanto, as coisas não são bem assim:
Em primeiro lugar, porque nos negócios, quer sejam os das famílias, os das empresas ou os dos Estados, ninguém dá nada a ninguém, e quem empresta dinheiro quer ter a garantia de que o pagamento irá ser efectuado nos prazos estipulados.
Em segundo lugar, os tais especuladores não são aquelas aquelas sinistras pessoas singulares, para que remete a descrição estereotipada, mas sim os grandes bancos grossistas, sediados na City londrina e na Wall Street de Nova Iorque, pertencentes à fina aristocracia financeira e liderados por gestores de elite, e que suscitam a reverência e o fascínio dos políticos alinhados com o neo-liberalismo reinante, incluindo os políticos dos partidos do arco governamental (PS, PSD e CDS).
Em terceiro lugar, é imperioso reconhecer que a especulação não é exclusiva deste segmento de actividade, antes se estendendo ao funcionamente de todo o mundo financeiro do feroz capitalismo neo-liberal. Genericamente, até poder-se-ia afirmar que a especulação financeira é o motor do sistema, pois foi através da sua sofisticada prática que uma minoria procedeu rápidamente a uma escandalosa apropriação de riqueza dos países, nos últimos quarenta anos. Não se compreende, pois, que aqueles políticos e governantes, que agora verberam contra os tais imaginários especuladores marginais, tenham colaborado dedicadamente com o sistema, promovendo políticas a favor do capital financeiro, dos grandes grupos económicos e das multinacionais. Não se pode dizer bem do sistema quando convém, e só falar da especulação quando os bancos grossistas sobem os juros para cobrir o risco de incumprimeto de alguns países, risco que é real.
Uma outra manobra corre paralela com a anterior, e que consiste em atribuir as culpas às agências de rating (notação financeira), fazendo passar a ideia de que as suas análises são caprichosas e mal intencionadas, favorecendo os especuladores mafiosos. É necessário também desmontar e relativizar este conceito, que os políticos difundiram para tentar esconder as suas enormes responsabilidades no descalabro das finanças públicas e da economia, e, ao mesmo tempo, explicar o seu funcionamento. Antes disso, convém dizer que a contratualização das agências de notação financeira é da responsabilidade dos governos, que têm de lhes pagar os respectivos serviços, e não dos bancos grossistas, que emprestam o dinheiro aos Estados. Os governos podem inclusivamente solicitar que as informações não sejam tornadas públicas, recurso que nenhum governo, carente de créditos do exterior, desencadeia, pois arriscar-se-ia a não encontrar nenhum banco grossista disponível. Estes bancos necessitam, numa lógica de especialização do trabalho, de uma estrutura que, de um modo independente, avalie o risco dos empréstimos. Estas agências funcionam, nesta mediação entre os bancos e os Estados, como as empresas de certificação da Qualidade funcionam na mediação entre as empresas e os consumidores, em relação ao bom estado dos produtos e à eficiência da empresas que prestam serviços. E as agências de rating nem sequer se preocupam muito com os défices orçamentais dos Estados. O que lhes interessa saber é se as economias desses Estados têm potencial suficiente para, no futuro, assumirem o compromisso da dívida, que vão contrair. É o que faz qualquer banco a retalho, perante um cliente que solicite um empréstimo, procedendo imediatamente ao cálculo da respectiva taxa de esforço.
Poderá haver em todo este complexo processo do funcionamento das agências de rating, desvios à sua independência, mas, se eles forem muito evidentes, a agência que se deixar tentar pelo favorecimento dos bancos ou dos governos acabará por cavar a sua própria sepultura, por descrédito. Olhando para as finanças públicas da Grécia, de Portugal e de Espanha é evidente que as suas dívidas são anormalmente elevadas e que o esforço para corrigir os seus défices orçamentais obriga os analistas a avaliar se as suas economias, já debilitadas, estão em condições de gerar receitas para pagar as futuras dívidas. E se as agências de rating não questionam a França e outros países, que têm dívidas soberanas elevadas e défices orçamentais desequilibrados, é porque as suas economias têm potencial suficiente para garantir que as dívidas a contrair estão bem ancoradas.
Se na actual situação, existe especulação em relação a Portugal, é porque os sucessivos governos, incompetentes e néscios, se puseram a jeito, não sabendo gerir a dívida externa, deixando-a subir, como se o dinheiro caísse do céu, e não sabendo promover a poupança das empresas e dos cidadãos, assunto que abordaremos proximamente.
O actual governo, ao reeditar a tese da cabala, em relação à subida dos juros da dívida pública, pretende fugir às suas responsabilidades e, ao mesmo tempo, enganar os portugueses, para que os sacrifícios, que estão a ser pedidos à sacrificada classe média e, principalmente, aos trabalhadores assalariados e aos reformados, sejam assumidos sem resistência e em nome do bem da Pátria ameaçada.

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