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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A luta financeira: a opinião de Howard Davies*



Durante pelo menos um quarto de século, o sector financeiro cresceu muito mais rapidamente do que a economia, tanto nos países desenvolvidos como em países em desenvolvimento. A percentagem total de activos financeiros (acções, obrigações e depósitos bancários) representava, em 1980, 100% do PIB do Reino Unido. Em 2006, esta percentagem subiu para 440%. Na China, os activos financeiros passaram de não existentes para 300% do PIB durante o mesmo período. À medida que a indústria financeira crescia, também aumentava a sua rentabilidade. A percentagem total dos lucros das empresas financeiras dos Estados Unidos disparou de 10% em 1980 para 40% em 2006.
Perante este desempenho, não é surpreendente que os pagamentos no sector financeiro tenham disparado. A City de Londres, a baixa de Manhattan e poucos mais centros financeiros tornaram-se máquinas de fazer dinheiro que permitiram que a banca de investimento, os gestores dos "hedge funds" e de fundos de capital de risco ficassem excessivamente ricos. Líderes universitários, como eu, passam muito tempo a tentar persuadi-los a direccionar parte destes ganhos para as suas velhas escolas.
Durante os últimos dois anos as coisas foram diferentes. Muitas empresas financeiras reduziram drasticamente os seus balanços e, como é óbvio, algumas tiveram que fechar. A alavancagem caiu de forma abrupta. Bancos de investimento que em 2007 tinham uma alavancagem 30 vezes superior ao capital viram este valor cair para pouco mais de dez. Os volumes transaccionados caíram, tal como os empréstimos bancários, e registaram-se despedimentos nos centros financeiros de todo o mundo. Será um fenómeno de curto prazo? Iremos assistir a um rápido crescimento do sector financeiro, assim que a economia mundial recupere? O mercado está cheio de rumores de que os bónus estão a regressar, os "hedge funds" estão a realizar retornos de dois dígitos e que a actividade está a reavivar o mercado de capital de risco. Estes rumores são presságios de uma recuperação robusta do sector financeiros ou apenas mitos urbanos? Não existe uma resposta certa para esta questão, mas talvez a história económica possa dar algumas pistas.
Uma análise recente realizada por Andy Haldane, do Banco de Inglaterra, sobre os retornos do sector financeiro britânico sugere que os últimos 25 anos foram muito invulgares. Suponhamos que em 1900 tinha feito uma aposta de longo prazo em acções financeiras e uma aposta de curto prazo em acções gerais. De facto estaria a apostar que o sector financeiro britânico iria ter um melhor desempenho do que o mercado. Durante os primeiros 85 anos, teria sido uma aposta muito pouco interessante, que teria gerado um retorno médio de 2% ao ano. Mas entre 1986 e 2006 teria sido radicalmente diferente. Durante essas duas décadas, o retorno médio anual seria superior a 16%. Como refere Haldane, a "banca tornou-se na galinha dos ovos de ouro". De facto, não há nenhum período na história financeira recente do Reino Unido semelhante a essas décadas. Se tivesse desfeito a sua aposta há três anos estaria agora muito tranquilo - se tivesse optado pelo dinheiro, como é óbvio - porque o período que se seguiu a 2006 anulou a maioria dos ganhos. Se tivesse mantido as suas acções até ao final do ano passado, durante 110 anos o seu investimento teria gerado um retorno médio anual inferior a 3%, o que, de uma maneira geral, ainda assim, representaria uma estratégia de "break even". Porque é que esta experiência de 20 anos foi tão invulgar, com retornos muito mais elevados do que em qualquer outra altura do último século? A resposta mais sincera parece ser a alavancagem. Os bancos engrenaram de uma forma espectacular, numa corrida competitiva para gerar maiores retornos. Haldane descreve isto como um recurso à roleta.Talvez esta analogia seja um pouco insultuosa para os que jogam roleta. De facto, a frase "banca de casino" ignora o facto dos casinos terem um controlo bastante eficiente dos seus retornos. Normalmente, são muito astutos na gestão de risco, ao contrário de muitos bancos, que aumentaram bastante a sua alavancagem - e consequentemente o risco - durante os últimos 20 anos. As conclusões que podemos tirar para o futuro dependem muito da forma como os bancos centrais e os reguladores vão reagir a esta crise.
Actualmente, as instituições financeiras estão a aprender as lições por elas próprias, reduzindo a alavancagem e acumulando capital e liquidez, enquanto as autoridades tentam convencer os bancos a aumentar os empréstimos - precisamente a estratégia que levou à actual crise. Claro que no longo prazo vai ser necessária uma abordagem diferente. De facto, as autoridades estão a seguir a estratégia defendida, pela primeira vez, por Santo Agostinho. Elas gostariam que os bancos fossem "castos" mas não para já. Mas quando o crescimento regressar, a alavancagem será muito menor do que antes. Os reguladores já falam na possibilidade de impor rácios de alavancagem, bem como limites aos activos de risco. Se o fizerem, como eu espero, não haverá retorno para as estratégias das últimas duas décadas. Nesse caso, o sector financeiro deixará de ser uma indústria que sistematicamente supera o resto da economia. Claro que haverá vencedores e perdedores mas parece pouco provável que o desempenho do sector continue sistematicamente a superar o da economia. O que isso vai significar para as remunerações do sector financeiro é uma questão mais complexa, à qual voltarei.

* Howard Davies, Director da London School of Economics, foi o presidente fundador da Autoridade de Serviços Financeiros Britânica e é antigo vice-governador do Banco de Inglaterra.

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