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quinta-feira, 25 de abril de 2013

Poema: O POEMA DA MELANCOLIA DOS ESPELHOS OU - por maria azenha

Óleo - Toby Wiggins

O POEMA DA MELANCOLIA DOS ESPELHOS OU

(primeiro acto)

o poeta
deve entrar no infinito com múltiplos espelhos
caso contrário o infinito é uma história triste
coxa para o resto da vida

agora
estou a olhar para a avenida
e vejo este poema com adesivos
um poema frouxo um poema
que nunca foi escrito
na tabuleta do infinito

fui então despedida

paulatinamente vou aparecendo
aqui ou acolá dedico-me então
à minha substituição permanente
sou uma espécie de governo
ou de mi(ni)stério da educação
com muitos amigos por exemplo

(segundo acto)

o esteves da tabacaria
que não é o esteves da tabacaria
não me disse adeus mas eu
disse-lhe que estava a escrever
o poema do chapéu preto ou
o poema da melancolia dos espelhos
etc etc e tal etc etc
ad infinitum

(terceiro acto)

devo certamente tornar-me polícia
estou a pensar

desapareceu de repente
a minha caneta pela via-láctea dentro

abro então a página cinco do livro do infinito
e escrevo o poema que nunca foi escrito
o poema da melancolia
dos espelhos ou

o poema deste país dona alice
que é minha vizinha

maria azenha
in " Nossa Senhora de Burka", 2002


Nota: A imprevisibilidade temática e formal é uma característica que se vai descobrindo em cada novo poema de Maria Azenha. Há uma transversalidade enriquecedora, neste domínio, ao ponto de se poder afirmar que Maria Azenha, no estilo e no tema, não se copia a si própria. Daí, eu já ter referido, em comentário anterior, a postura desconcertante da sua poesia, que aborda  sempre a realidade poética pelo lado do absurdo mágico e fantástico, o que obriga o leitor a fixar-se com mais atenção no poema. Este poema, “O POEMA DA MELANCOLIA DOS ESPELHOS OU”, é a prova disso, até no seu título. O recurso à estrutura cénica de um texto teatral permite-lhe a mudança rápida do tema, da forma e da estrutura do poema.
Os espelhos (e as imagens poéticas que eles devolvem) são elementos recorrentes na poesia de Maria Azenha, e isto tem muito a ver com a multiplicidade de heterónimos em que se desdobra a sua personalidade poética.
AC

Maria Azenha colabora neste blogue, publicando-se um poema seu, às quintas-feiras.

2 comentários:

Anónimo disse...

Excelente este seu olhar Alexandre Castro, sobre a poética de Maria Azenha.

Partilhei por lá.

Abraço,

Citoyen Du Monde

Mar Arável disse...

Abre o pano
cai o pano
não existe pano

o tempo passa