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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Um Poema ao Acaso: Tudo perdi e O porto sepulto - Giuseppe Ungaretti (1888-1970)


Tudo perdi

Tudo perdi na infância
e já não posso mais
desmemoriar-me num grito.

A infância soterrei
no fundo das noites
e agora, espada invisível,
me separa de tudo.

De mim recordo que exultava amando-te,
e eis-me perdido
no infinito das noites.

Um desespero que incessante aumenta
a vida não é mais,
presa no fundo da garganta,
que uma rocha de gritos.
.
Giuseppe Ungaretti
*
mmm.*
O porto sepulto

Aí chega o poeta
e depois volta à luz com os seus cantos
e os dispersa.

Desta poesia
resta-me
um nada
de inexaurível segredo.

Giuseppe Ungaretti
***
Nota: Giuseppe Ungaretti foi o maior poeta italiano do século XX. Em França, enquanto estudante na Sorbonne, conviveu com os poetas vanguardistas Apollinaire, Gide e Valéry, integrando-se assim na grande revolução estética e literária que marcou toda a literatura ocidental, fazendo do primeiro quartel do século XX um dos períodos mais fecundos da literatura universal.
Depois de ter integrado, no seu país, a revista Lacerba (1913-1915), onde se adopta o figurino futurista, preconizando-se um lirismo puro, através da expressão fragmentária e imediata da ideia poética (posição idêntica ao expressionismo alemão e ao “imagismo” anglo-saxónico), Ungaretti publica em 1916 o livro de poemas “Il Porto Sepolto”, onde figuram os seus mais belos poemas, muito deles escritos durante o período em que serviu como soldado o exército do seu país na Primeira Guerra Mundial. Jorge de Sena, que traduziu muita da sua poesia, caracteriza assim esta obra: “colectânea cujos fragmentarismo, concisão, essencialidade, despojamento linguístico, foram uma revolução poética que colocou o autor à frente do que, nas décadas seguintes, se chamaria, na Itália, poesia “hermética”. Os dois poemas, seleccionados para este espaço, reflectem essas características.
Alexandre de Castro
28/5/2007