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quarta-feira, 15 de julho de 2009

Uma crise mal explicada (1)

Imagem retirada do obvious


1- O endividamento das famílias

Os economistas neoliberais, os governantes e a imprensa comprometida tentaram passar a ideia de que a actual crise teve a sua origem no sector financeiro, e que, depois, por contaminação, veio desembocar numa crise económica. A partir de determinado momento, até se procurou, de uma forma subliminar, apresentar a crise como algo de inevitável e etéreo, sem responsáveis nem culpados, como se de uma catástrofe natural se tratasse, e cuja previsibilidade seria impossível determinar. Estas explicações apenas incidiam sobre a parte emersa do iceberg, ignorando, por conveniência, a sua parte imersa, muito mais extensa e profunda, logo muito mais determinante no impulso do seu contínuo movimento.
No entanto, economistas independentes, e não comprometidos com os tentaculares poderes da alta finança, que dominam o mundo e que têm como serventuários os governos e as oligarquias dos países dóceis, não se contentaram com essa visão redutora, e procuraram, dentro do exercício mental que vêm fazendo há anos, aprofundar a sua investigação, tentando compreender as causas primárias que desencadearam uma crise de consequências profundas, e que poderá levar a muitas alterações na ordem mundial. Muitos destes economistas, e até muitas personalidades insuspeitas de subscreverem ideologias de esquerda, disseram que nada viria a ser igual, depois da crise.
Na realidade, para compreender o que se passou, há que compreender, em primeiro lugar, como funciona a economia, assim como o sistema bancário e as bolsas de valores, e que senhores servem. Compreendendo esta complexa máquina, percebe-se que a crise começou por ser económica, embora insidiosa e larvar, e que, depois, devido às enormes contradições do capitalismo neoliberal, desembocou na crise financeira, para, por sua vez, prolongar-se numa nova crise económica.
A partir do início da década de noventa, a economia mundial funcionou essencialmente com dois motores ou, se quisermos, funcionou principalmente sobre duas plataformas. A economia chinesa, a exportar produtos de baixo custo, em consequência da acelerada industrialização da década anterior, e a economia dos Estados Unidos (e, em menor grau, a da União Europeia), a importar esses produtos e a exportar para a China indústria pesada, tecnologia e investimento. Criou-se assim uma dependência económica entre estas economias, e, entre as várias consequências, foi visível o crescimento de uma classe média chinesa, a melhorar substancialmente os seus padrões de vida, e uma classe média americana e europeia, lentamente a perder poder de compra e alguns direitos sociais, depois de um período de euforia consumista .
Para travar este declínio, os Estados Unidos, beneficiando do regresso dos dólares à sua economia, através da venda dos seus Títulos de Tesouro, de que a China é o maior credor, iniciaram o processo, através do bancos, de aprofundar e alargar o crédito bancário imobiliário à generalidade da classe média e, depois, às classes mais pobres (sub-prime), criando assim uma dívida gigantesca. As empresas da economia real também aumentaram a sua produção, recorrendo a um crédito artificialmente baixo, imposto pela Reserva Federal. Eram os tempos da abundância, do acesso fácil aos bens não essenciais. Não havia família da classe média que não exibisse meia dúzia de cartões de crédito, com que pagava automóveis, viagens, férias em destinos paradisíacos, as propinas dos filhos na universidade, tudo isto somado ao pagamento dos juros e da amortização da casa, que já tinha sido comprada. O próprio Bush, na sequência dos primeiros sinais da crise, apelava aos americanos para consumirem o mais que pudessem.
Este endividamento excessivo das famílias começou, a partir de certa altura, a tornar-se insustentável, primeiro de uma maneira insidiosa, pois entrou-se no ciclo do recurso a um novo crédito para pagar a dívida de um crédito anterior, e depois, entrando num progressivo incumprimento, em diabólica espiral, que acabou na execução da hipoteca da própria casa, que o banco colocava novamente para venda no mercado imobiliário. Com os salários a não acompanharem o excessivo nível de endividamento, o consumo começou a cair e a produção de bens de consumo a baixar.
Por sua vez, a produção industrial ia caindo, ressentindo-se dos efeitos da deslocalização para as economias emergentes de muitas indústrias, principalmente para a China e para a Índia, reduzindo assim o normal crescimento do emprego. O investimento, pedra fundamental para o crescimento económico, começou a deslocar-se da economia real para a economia virtual, que o grande capital financeiro foi construindo para aumentar exponencialmente os seus fabulosos lucros.
Com a perda de poder de compra, e um menor crescimento do consumo, por parte da classe média americana e europeia, a redução de encomendas começou a afectar a economia chinesa e a indiana. Na China, ainda antes de ter rebentado a crise financeira, 75 por cento das empresas, vocacionadas para a exportação, já acusavam um forte abrandamento da produção.
Todo este processo ocorria de uma maneira difusa e que, de certa maneira, escondia o grande cataclismo que se avizinhava. Os diferentes indicadores económicos, que o reflectiam, foram erradamente interpretados, através da visão neoliberal, como fenómenos passageiros e conjunturais, ignorando a sua dimensão estrutural e crítica. Aos pensadores neoliberais não passa pela cabeça admitirem as contradições do capitalismo, dominado e controlado pelo conglomerado das multinacionais e do grande capital financeiro, e que se reflectem de forma dramática no empobrecimento progressivo das classes médias dos países desenvolvidos, o que já é visível, e isto para não falar no agravamento das condições de vida das populações dos países pobres, onde a fome e a doença alastram. Para os ideólogos neoliberais, acérrimos adeptos da construção de mercado livre, global e desregulamentado, que conduziu rapidamente à globalização selvagem, o seu secreto objectivo consistia na satisfação da voragem predadora das oligarquias, desenvolvendo, por isso, todos os mecanismos para influenciar os governos, que começaram a aplicar nas suas respectivas economias os conceitos e pressupostos da sua doutrina económica. O resultado está à vista. Mas a mistificação da crise continua, assim como continua a mistificação das medidas para a combater, como iremos ver num próximo artigo.

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