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terça-feira, 28 de julho de 2009

Um Poema ao Acaso; Comigo me desavim Sá de Miranda


Comigo me desavim


Comigo me desavim
Sou posto em todo o perigo:
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor da gente fugia,
Antes que assim crecesse;
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meo espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho inimigo de mim?

Sá de Miranda
1481-1558
***
Nota: Este poema de Sá de Miranda antecipa em quatro séculos, segundo o meu ponto de vista, o estilo modernista da poesia portuguesa dos anos vinte da centúria passada, já que explora a perspectiva introspectiva (que é diferente da do modelo intimista e sentimental que percorre, sob a influência das sucessivas escolas literárias, toda a poesia portuguesa desde a época dos Cancioneiros até à actualidade). Mais nenhum poeta, antes dos modernistas do século vinte, fez uma incursão no modelo introspectivo, tal como o fez Sá de Miranda neste poema. Diria que, ao lê-lo, se é recorrentemente transportado para o estilo de alguns poemas de Pessoa e de Sá-Carneiro.
Bem, mas isto é uma opinião muito pessoal que poderá vir a admitir, naturalmente, todas as reservas a quem, habilitado e credenciado com mais conhecimentos, possa melhor ajuizar da sua validade. No entanto, o que já transcende qualquer interpretação subjectiva e prescinde do aval de outros juízos, é a afirmação, que pode ser recolhida em qualquer História da Literatura Portuguesa, de que Sá de Miranda se encontra, por mérito próprio, na Galeria dos Príncipes da Poesia Portuguesa, ombreando nesse estatuto com Camões e Pessoa, entre outros. Foi ele que, após uma visita a Itália, na década de vinte de Quinhentos, e onde o revolucionário movimento do Renascimento moldava o novo Homem, negando e renegando a escuridão medieval, trouxe a nova “escola literária” para Portugal. Dele disse Almeida Garrett que “filosofou com as musas e poetizou com a filosofia”, afirmação esta que define com exactidão as características da sua poesia, cujo brilho não foi ofuscado pela ingratidão do velho e embrutecido Portugal da sua época, desgraça esta que, posteriormente, também perseguiu Camões, Damião de Góis, padre António Vieira e António José da Silva (O Judeu). Apenas lhe valeu a amizade de D. João III e a do infante D. Luís. Desgostoso com o bafio da corte, onde já medrava, ameaçador, o monstro maligno da sanha persecutória do espírito inquisitorial, escolheu o exílio, numa sua propriedade no Minho, onde continuou, até à sua morte, a sua fecunda obra literária.
Alexandre de Castro

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