A bruxa de Trevões
Em qualquer história aparece sempre uma
personagem que se destaca das restantes por uma qualquer saliência da
personalidade ou por uma qualquer qualidade especial, seja ela de natureza
comportamental, temperamental, anímica ou de uma outra variante psicológica,
das muitas que compõem o tipo humano.
Neste caso, é o senhor F, um homem que, naquela
aldeia duriense, situada na bordadura da fronteira com o planalto transmontano,
sobressaía entre os demais, por ser muito esperto e matreiro e ter o olho muito
fino para o negócio. Destemido, bem-falante, arrojado e possuidor de uma grande
autoconfiança, seria assim que ele seria descrito por quem estivesse, fora da
história, a observar-lhe o grau de superioridade que exibia, onde quer que se
encontrasse. Apostou ele, numa roda de amigos, à volta de uma mesa de uma
taberna da Carrapatosa - e já depois de ter dado as últimas notícias sobre a
guerra do Hitler, ouvidas em outros sítios, das suas constantes andanças - que
iria desmascarar o raio da velha bruxa de Trevões, cuja fama de advinha e de
curandeira se espalhara por muitas léguas em redor.
Foi só descer, por um caminho de cabras, a
íngreme ladeira do vale do Douro, contratar o serviço ao barqueiro da Valeira,
para atravessar o rio, subir a encosta até o Santo Salvador do Mundo - possivelmente um antigo local de culto celta, recuperado depois pelo
cristianismo, que ali ergueu doze capelinhas, tantas quantas são as estações da
Via Sacra, mas que agora estava votado ao abandono, devido à concorrência de
outros santuários mais sumptuários e melhor situados estrategicamente, em lugares
de acesso fácil - e ei-lo a apanhar a nova estrada de maquedame, que o levaria, já depois de uma légua a andar a pé, à
aldeia de Trevões.
Quando a velha o mandou franquear a porta que
dava para uma salinha, onde recebia os clientes, já ele tinha mudado de
semblante, agora carregado de fingida tristeza e de recatada humildade. A tal
personagem, fora da história, que o visse agora, poderia dizer que o senhor F
já não era o mesmo homem exuberante, que vira na Carrapatosa, mostrando-se
agora cabisbaixo, tímido e exibindo até uma certa dificuldade em falar.
Feita a saudação do costume, com muita
reverência de parte a parte, e depois de ambos se sentarem à volta de uma
mesinha, coberta por uma camilha vermelha, a velha, de olhos vivos e
perscrutadores, à procura de um qualquer sinal importante e inspirador,
perguntou-lhe ao que vinha.
O senhor F torceu-se no assento, colocou no
movimento das mãos, sobre o tampo da mesa, toda a sua encenada hesitação, e
respondeu: sabe, minha senhora! O meu pai foi para o Brasil, quando eu era
muito pequeno, ao ponto de nem sequer me lembrar muito da sua cara. Depois de
algumas cartas, enviadas para a minha mãe, ele deixou de escrever e nunca mais
soubemos nada sobre a sua vida. Não sabemos se é vivo ou se é morto.
A velha, depois de perguntar qual a terra do
senhor F, e o que fazia, assim como o nome completo do seu pai e o ano em que
ele emigrara para o Brasil, e dando sinal de estar satisfeita com as respostas
recebidas, pediu licença para retirar-se por uns momentos e entrou para uma
outra dependência da casa, fechando a porta, o que levou o senhor F a pensar
que a bruxa deveria ter ido consultar os recortes necrológicos dos jornais, que
ele sabia que ela guardava, só assim se explicando o facto de ela pedir o envio
dos jornais de terras tão estranhas e longínquas, a quem decidia ir para o
Brasil ou para África, depois de ouvir o seu vaticínio.
Uma vez regressada à sala, e compenetrando-se na
solenidade do momento do anúncio do augúrio, que, como se saberá, será
infalível e irrevogável, a velha disse: Sabe, senhor F!... O seu pai está vivo,
está com muita boa saúde e é um homem muito rico. Brevemente, ele regressará a
Portugal, para se juntar à família.
Palavras não eram ditas, e já o senhor F, com um
ar triunfalista, e batendo com os nós dos dedos no tampo da mesa, largou uma
sonora gargalhada e retomou o seu ar altivo e descontraído. Oh, minha senhora!
O meu pai já morreu há uns anos e nunca foi para o Brasil. E, quando já se
levantava, exibindo descarado desdém e dando mostras de que se iria embora,
mesmo sem pagar o serviço, a velha, com uma serenidade profunda, adquirida nas
catacumbas do tempo, por herança dos seculares segredos da profissão,
travou-lhe o ímpeto e a afronta do escárnio: O senhor F está enganado! O seu
pai, aquele que já morreu há uns anos, não era o seu pai…
Alexandre
de Castro
Maio de 2014
Publicado no Ponte Europa e no Diário de uns Ateus.
***«»***
Uma nota a propósito: Trevões, uma aldeia mergulhada na sua obscuridade secular,
anda agora nas bocas do mundo, a propósito do homicida que tem conseguido
escapar aos cercos e às perseguições policiais. Só quem conhece a instintiva
capacidade de sobrevivência daqueles povos e o acidentado terreno do Alto Douro
poderá perceber a situação de inferioridade das forças da GNR e da PSP. Por
aqueles montes, que parecem o teto do mundo, há esconderijos escavados nas
rochas pelo tempo e cercados de mato denso, que só os caçadores, como é o caso
do homicida, conhecem. E nessa faina (trata-se de caçadores profissionais, pois
vendem a caça que apanham), eles recuperam os sentidos e os instintos do Homem
pré-Histórico.
3 comentários:
Por vezes acontece, que os que tentam desmascarar, acabam sendo desmascarados. Gostei muito do conto, Alexandre.
Beijinhos.
A Sónia destacou, e bem, a intencionalidade moralista da história. Mesmo que possuidores da verdade (ou do que julgamos ser a verdade), nunca se pode confiar totalmente na autoconfiança que essa mesma verdade inspira. É que poderemos ser sempre atraiçoados nas curvas de um qualquer percurso, por mais linear que ele pareça.
Sónia M: Há também, neste conto, uma clara intenção de ilustar a enorme capacidade argumentativa dos profissionais das ciências ocultas e dos fenómenos transcendentais (incluindo também aqui os sacerdotes de todos os cultos),de destruírem a arquitetura de todo o pensamento baseado na rigorosa racionalidade, subvertendo a lógica ou criando uma nova lógica.
Possivelmente, o senhor F, que teria ficado atordoado com a resposta recebida,começou a partir daquele momento a duvidar da segurança dos seus próprios pensamentos, até ali assumidos como definitivos. Pelo menos, por uma única vez, ele ter-se-ia interrogado sobre a possível autenticidade e veracidade do poder sobrenatural. E se o raio da velha bruxa tem razão?
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