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quarta-feira, 7 de maio de 2014

Conto: A Bruxa de Trevões


A bruxa de Trevões
Em qualquer história aparece sempre uma personagem que se destaca das restantes por uma qualquer saliência da personalidade ou por uma qualquer qualidade especial, seja ela de natureza comportamental, temperamental, anímica ou de uma outra variante psicológica, das muitas que compõem o tipo humano.
Neste caso, é o senhor F, um homem que, naquela aldeia duriense, situada na bordadura da fronteira com o planalto transmontano, sobressaía entre os demais, por ser muito esperto e matreiro e ter o olho muito fino para o negócio. Destemido, bem-falante, arrojado e possuidor de uma grande autoconfiança, seria assim que ele seria descrito por quem estivesse, fora da história, a observar-lhe o grau de superioridade que exibia, onde quer que se encontrasse. Apostou ele, numa roda de amigos, à volta de uma mesa de uma taberna da Carrapatosa - e já depois de ter dado as últimas notícias sobre a guerra do Hitler, ouvidas em outros sítios, das suas constantes andanças - que iria desmascarar o raio da velha bruxa de Trevões, cuja fama de advinha e de curandeira se espalhara por muitas léguas em redor.
Foi só descer, por um caminho de cabras, a íngreme ladeira do vale do Douro, contratar o serviço ao barqueiro da Valeira, para atravessar o rio, subir a encosta até o Santo Salvador do Mundo - possivelmente um antigo local de culto celta, recuperado depois pelo cristianismo, que ali ergueu doze capelinhas, tantas quantas são as estações da Via Sacra, mas que agora estava votado ao abandono, devido à concorrência de outros santuários mais sumptuários e melhor situados estrategicamente, em lugares de acesso fácil - e ei-lo a apanhar a nova estrada de maquedame, que o levaria, já depois de uma légua a andar a pé, à aldeia de Trevões.
Quando a velha o mandou franquear a porta que dava para uma salinha, onde recebia os clientes, já ele tinha mudado de semblante, agora carregado de fingida tristeza e de recatada humildade. A tal personagem, fora da história, que o visse agora, poderia dizer que o senhor F já não era o mesmo homem exuberante, que vira na Carrapatosa, mostrando-se agora cabisbaixo, tímido e exibindo até uma certa dificuldade em falar.
Feita a saudação do costume, com muita reverência de parte a parte, e depois de ambos se sentarem à volta de uma mesinha, coberta por uma camilha vermelha, a velha, de olhos vivos e perscrutadores, à procura de um qualquer sinal importante e inspirador, perguntou-lhe ao que vinha.
O senhor F torceu-se no assento, colocou no movimento das mãos, sobre o tampo da mesa, toda a sua encenada hesitação, e respondeu: sabe, minha senhora! O meu pai foi para o Brasil, quando eu era muito pequeno, ao ponto de nem sequer me lembrar muito da sua cara. Depois de algumas cartas, enviadas para a minha mãe, ele deixou de escrever e nunca mais soubemos nada sobre a sua vida. Não sabemos se é vivo ou se é morto.
A velha, depois de perguntar qual a terra do senhor F, e o que fazia, assim como o nome completo do seu pai e o ano em que ele emigrara para o Brasil, e dando sinal de estar satisfeita com as respostas recebidas, pediu licença para retirar-se por uns momentos e entrou para uma outra dependência da casa, fechando a porta, o que levou o senhor F a pensar que a bruxa deveria ter ido consultar os recortes necrológicos dos jornais, que ele sabia que ela guardava, só assim se explicando o facto de ela pedir o envio dos jornais de terras tão estranhas e longínquas, a quem decidia ir para o Brasil ou para África, depois de ouvir o seu vaticínio.
Uma vez regressada à sala, e compenetrando-se na solenidade do momento do anúncio do augúrio, que, como se saberá, será infalível e irrevogável, a velha disse: Sabe, senhor F!... O seu pai está vivo, está com muita boa saúde e é um homem muito rico. Brevemente, ele regressará a Portugal, para se juntar à família.
Palavras não eram ditas, e já o senhor F, com um ar triunfalista, e batendo com os nós dos dedos no tampo da mesa, largou uma sonora gargalhada e retomou o seu ar altivo e descontraído. Oh, minha senhora! O meu pai já morreu há uns anos e nunca foi para o Brasil. E, quando já se levantava, exibindo descarado desdém e dando mostras de que se iria embora, mesmo sem pagar o serviço, a velha, com uma serenidade profunda, adquirida nas catacumbas do tempo, por herança dos seculares segredos da profissão, travou-lhe o ímpeto e a afronta do escárnio: O senhor F está enganado! O seu pai, aquele que já morreu há uns anos, não era o seu pai…    
Alexandre de Castro
Maio de 2014

***«»***
Uma nota a propósito: Trevões, uma aldeia mergulhada na sua obscuridade secular, anda agora nas bocas do mundo, a propósito do homicida que tem conseguido escapar aos cercos e às perseguições policiais. Só quem conhece a instintiva capacidade de sobrevivência daqueles povos e o acidentado terreno do Alto Douro poderá perceber a situação de inferioridade das forças da GNR e da PSP. Por aqueles montes, que parecem o teto do mundo, há esconderijos escavados nas rochas pelo tempo e cercados de mato denso, que só os caçadores, como é o caso do homicida, conhecem. E nessa faina (trata-se de caçadores profissionais, pois vendem a caça que apanham), eles recuperam os sentidos e os instintos do Homem pré-Histórico.

3 comentários:

Sónia Micaelo disse...

Por vezes acontece, que os que tentam desmascarar, acabam sendo desmascarados. Gostei muito do conto, Alexandre.
Beijinhos.

Alexandre de Castro disse...

A Sónia destacou, e bem, a intencionalidade moralista da história. Mesmo que possuidores da verdade (ou do que julgamos ser a verdade), nunca se pode confiar totalmente na autoconfiança que essa mesma verdade inspira. É que poderemos ser sempre atraiçoados nas curvas de um qualquer percurso, por mais linear que ele pareça.

Alexandre de Castro disse...

Sónia M: Há também, neste conto, uma clara intenção de ilustar a enorme capacidade argumentativa dos profissionais das ciências ocultas e dos fenómenos transcendentais (incluindo também aqui os sacerdotes de todos os cultos),de destruírem a arquitetura de todo o pensamento baseado na rigorosa racionalidade, subvertendo a lógica ou criando uma nova lógica.
Possivelmente, o senhor F, que teria ficado atordoado com a resposta recebida,começou a partir daquele momento a duvidar da segurança dos seus próprios pensamentos, até ali assumidos como definitivos. Pelo menos, por uma única vez, ele ter-se-ia interrogado sobre a possível autenticidade e veracidade do poder sobrenatural. E se o raio da velha bruxa tem razão?