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domingo, 5 de junho de 2011

Um Poema ao Acaso: O tempo do sol se pôr - André Domingues


O tempo do sol se pôr

Pedes-me que vá contigo ver a tarde rebentar, assistir a um
espectáculo único, em estreia absoluta numa praia bem afastada da
cidade e de toda a máquina de má-criação ocidental, um filme
propositadamente mudo projectado em céu aberto, com uma
narrativa demasiadamente linear e efeitos sonoros arcaicos, apesar
de apresentar um elenco de luxo, entre estrelas prematuras e luas
célebres pela sua perspicácia ornamental. Pedes: por favor, vem ver
comigo a tarde rebentar, a tarde rebentar, a tarde rebentar, o teu
telefone dá eco, mas o eco é só uma reflexão do som, nada mais,
não tem substância, sentido, não é nenhum indício de nada, eu é
que ouço tudo multiplicado, vejo tudo multiplicado, sinto tudo
multiplicado, agora, com o meu telefone a arder nas mãos e os uivos
transparentes do desejo que a tua voz adoça com coragem, agora
que tu pedes em demasia, agora que me amarras ao valor
acrescentado da tua chamada, pedaços de linhas trocadas e restos
de álcool nas sílabas onde o sol demora a entrar, agora que me
espancas com um convite apesar de tudo simpático, não fosse o
facto de ocultar a bomba atómica debaixo de tanta metáfora
desinteressada e um cheiro forte a ganância, realce e convicção.
A partir de determinada altura, já não pedes, persuades. A tua voz é
uma câmara fechada, onde o eco corrige as suas perfurações com
sangue e óleo de sândalo. A tua voz é perfeita, porque é
performática. A tua voz elabora um pão minúsculo, altamente
aliterado, que eu como, sílaba a sílaba, sem dar por nada. A a sua
assimilação é imediata e rapidamente entra o sol em circulação. O
pão tem a informação essencial que o teu pedido verbal transporta e
explora em metáforas, com a excepção de actuar directamente
sobre o meu sistema nervoso central, e suspender-me como uma
droga suspende os membros e a resposta mais provável.
As reticências não duram eternamente, a tarde vai-se afundando e é
preciso que eu diga qualquer coisa entretanto, mas eu continuo
calado, tão calado como um afogado entrevistado em plena acção,
Então? Anda lá. Passas primeiro por minha casa?, e eu, com a boca
cosida, cheia de palavras derrubadas, aftas, pequenos cadáveres
monumentais, eu murmurei qualquer coisa incompreensivelmente
cómica, numa língua que nunca soube falar. Foi então que tu
tomaste o meu grunhido como um sim (também o meu telefone dava
eco, disseste, para terminar) e incluíste no silêncio final um “Até
já” sonâmbulo, e foi também então que a chamada caiu
desamparada e os pontos que eu tinha nos lábios desapareceram,
sem mais, e o ser voltou ao seu lugar.
André Domingues
In blogue "Do Amor Mau"

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