Cavaco recomenda o exemplo de frugalidade e sacrifícios do interior
O discurso do Presidente da República na sessão solene do 10 de Junho deslocou o eixo das suas preocupações do centro da vida política para o interior do país. Uma metáfora, disse Cavaco Silva no fim.
Depois de discorrer sobre as potencialidades do interior e a necessidade de a ele regressar, promovendo a agricultura, o turismo e alguma indústria, o Chefe de Estado salientou no entanto que a principal potencialidade do interior estão as suas gentes. “A sua frugalidade e o seu espírito de sacrifício são modelos que devemos seguir num tempo em que a fibra e a determinação dos portugueses são postos à prova”, afirmou.
E foi aqui que deixou uma mensagem clara para o país, em particular para o próximo governo, representado na plateia por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, ambos ainda como líderes de partidos da oposição.
“Não podemos falhar. Os custos seriam incalculáveis. Assumimos compromissos perante o exterior e honramo-nos de não faltar à palavra dada”, disse, com grande solenidade.
PÚBLICO***
Curiosamente, fui com Cavaco Silva como primeiro-ministro que a desertificação do interior mais se intensificou, depois do 25 de Abril. Balizando a economia pela cartilha monocolor do neoliberalismo (a única cartilha que aprendeu a ler), os seus dois governos de maioria absoluta, perseguindo unicamente o efeito de escala e a vantagem de proximidade entre produtores (de bens e serviços), distribuidores e consumidores, promoveram a concentração da maioria das ajudas dos fundos comunitários na região da Grande Lisboa, em prejuízo do interior do país, onde a falta de investimentos, geradores de emprego, determinou o êxodo dos mais novos. Como os governos seguintes prosseguiram a aplicação do mesmo guião neoliberal da economia, que apenas se preocupa com as rentabilidades imediatas e ignora os efeitos a longo prazo, a desertificação na maioria dos concelhos do interior foi de tal monta, que se chegou ao ponto de, em alguns deles, serem as câmaras municipais os maiores empregadores locais, o que é uma situação anómala num país, cujos governantes afirmavam apostar no seu pujante desenvolvimento (que não é apenas crescimento económico).
Cavaco Silva, a quem competia desenhar um grande plano estratégico para a economia, limitou-se praticamente a gerir (e mal) os fundos comunitários, revelando aí a sua tacanhez como estadista. Durante os seus dois mandatos, não surgiram nenhumas reformas estruturantes, que mudassem o paradigma do desenvolvimento económico. Quando saiu do governo, odiado pela maioria do povo português, deixou o Estado e a economia com o mesmo perfil existente nos tempos de Salazar, um dirigente político que ele pretendeu canhestramente imitar. Este elogio e este apelo à frugalidade dos portugueses encaixa bem no pensamento político do ditador. Salazar tinha medo de perder o controlo do país, se facilitasse a proletarização intensiva do sector secundário da economia. Por isso, apenas permitiu uma tímida industrialização do país.
Quer Salazar quer Cavaco Silva promoveram os dois principais ciclos de crescimento económico do século XX (1950 a 1973 e 1986 a 1990, respectivamente), beneficiando de favoráveis condições externas, mas esqueceram-se de aplicar políticas que aumentassem a taxa de produtividade, que é o indicador económico mais significativo da saúde de uma economia. Naqueles dois períodos, o aumento do PIB per capita acompanhou o evidenciado pelo conjunto dos doze países mais desenvolvidos, mas a taxa de produtividade acusou uma crónica estagnação, que ainda hoje persiste.
Afirmámos aqui, numa nota sobre o desfecho das eleições presidenciais, com Cavaco Silva a ser eleito por vinte e três por cento dos eleitores inscritos , que o centro político deslocar-se-ia de S. Bento para o palácio de Belém, caso o PSD viesse a ganhar as eleições legislativas seguintes, perante um cenário, já pressentido, da queda do governo do PS, e de que, neste caso, seria Cavaco Silva o verdadeiro primeiro-ministro, através de interposta pessoa. Os avisos públicos já avançados para a acção do próximo governo, a chantagem emocional sobre a hipótese de um fracasso, e, agora, este ungido apelo à frugalidade dos portugueses mostram bem a sua intenção de ser o timoneiro deste barco prestes a naufragar.
Cavaco Silva, ao aceitar sem pestanejar e sem um reparo crítico os ditames da troika (UE-FMI-BCE), juntou-se aos partidos do arco da traição. O seu pendor autoritarista irá emergir, apoiado pela nova maioria parlamentar de direita, o que prefigura para o futuro um regime político autoritário, de perfil ditatorial, ou, se quisermos utilizar o termo do politicamente correcto, de uma democracia musculada.
E será essa ditadura travestida que é urgente começar a denunciar e a combater, tentando contrariar a orquestração da direita, que se prepara para arrasar o país com uma onda de choque brutal.
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