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terça-feira, 14 de junho de 2011

Um Poema ao Acaso: Deixa-me estudar Inês - Um poema inédito de Ana Nobre de Gusmão


Deixa-me estudar, Inês

Deixa-me estudar, Inês
por favor não me mandes mais mensagens nem voltes
a telefonar, não me obrigues a desligar o computador
e o telemóvel, até parece que não passei a tarde inteira
contigo, quantas vezes mais tenho de te dizer hoje que
ainda gosto de ti, que ainda te amo, que se pudesse
estava sempre, sempre contigo

mas também preciso de fazer pela vida e se não tiver
positiva no teste de amanhã estou feito, percebes,
quero mesmo acabar o liceu e entrar para
a universidade para vir a ser alguém de quem te possas
orgulhar, não te quero perder, não quero que deixes
de gostar de mim porque me tornei um falhado,
um medíocre

e por isso te peço, Inês, pára de enviar mensagens, pára
de telefonar, se não te apetece estudar vê um dvd ou vai
beber um café com uma das tuas amigas, a Tatiana,
por exemplo

pronto, juro que esta mensagem é a última que te escrevo
e se responderes palavra que saio da net e só me volto
a ligar amanhã, a sério, Inês, estou a falar a sério

deixa-me estudar, por favor

olha, veste a camisola que eu te emprestei e que ainda
deve cheirar a mim, ou põe aquela fotografia que te
mandei ontem no écran do computador e pensa em mim,
faz o que quiseres para atenuar a saudade,
mas deixa-me estudar, Inês

caraças, outra mensagem, o que é que se passa contigo,
não achas que estás a ser um bocadinho melga, aviso-te
que leio só mais esta e depois desligo-me

o quê, não te apareceu o período e tens medo
de estar grávida

eh pá, Inês, não me lixes, porque é que não me disseste
isso há mais tempo, estivemos a tarde toda juntos,
como é que eu vou conseguir ter cabeça para estudar
depois de me dizeres uma cena dessas

tens a certeza, fizeste bem as contas, tu és tão
despassarada com datas

não estás a gozar comigo, pois não, isto não é um truque
para monopolizares a minha atenção, pois não,
tu não és perversa

não sei o que dizer, estava à espera de tudo menos disso,
tu garantiste que não havia perigo, lembras-te, tu disseste
que estavas a tomar a pílula

como é que podes afirmar que te esqueceste um dia,
com essa simplicidade toda, como se fosse a coisa
mais natural do mundo, qual é a tua, Inês, desculpa,
mas és uma irresponsável, se queres dar cabo da tua vida
é lá contigo, mas da minha é que não dás, podes crer
que não vou sacrificar o futuro
por causa de um esquecimento teu

sim, eu sei, é de um ser vivo que se trata, é sobre
o nosso filho que estamos a falar, pois é,
mas eu não quero esse filho, Inês, amo-te
mas não estou preparado para ser pai,
ainda sou muito puto

e tu também, de resto,
por isso se estiveres mesmo grávida temos
de arranjar dinheiro para fazeres um desmancho

responde, Inês, por favor responde, eu sei que estás aí

olha, até pode ser que seja só um atraso,
pode acontecer, pelo menos é o que eu oiço
a minha mãe e as minhas irmãs dizerem às vezes

vá lá, Inês, deixa-te de fitas e atende o telemóvel,
não me deixes assim pendurado

Inês, eu sei que estás aí

Inês

caraças, Inês

pronto, ok, ganhaste, dá-me cinco minutos para morfar
qualquer coisa e vai ter comigo ao café
em frente à tua casa.

Ana Nobre de Gusmão
***
Ana Nobre de Gusmão

Nasceu em Dezembro de 1952, em Lisboa.
Estudou Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa e Design no ARCO. Vive em Portugal e na Suíça.
Colabora regularmente na revista Elle Portuguesa e na Storm Magazine.
Livros publicados
Delito sem Corpo - Ed. Presença, 1996 (Prémio Máxima Revelação)
Não É o Fim do Mundo - Ed. Presença, 1996
Aves do Paraíso - Asa Ed., 1997
Onda de Choque - Asa Ed., 1999
Das Tripas Coração - Asa Ed., 2000
Até Que a Vida Nos Separe (contos) - Asa Ed., 2002
O Pintor - Asa Ed., 2004

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