Deixa-me estudar, Inês
Deixa-me estudar, Inês
por favor não me mandes mais mensagens nem voltes
a telefonar, não me obrigues a desligar o computador
e o telemóvel, até parece que não passei a tarde inteira
contigo, quantas vezes mais tenho de te dizer hoje que
ainda gosto de ti, que ainda te amo, que se pudesse
estava sempre, sempre contigo
mas também preciso de fazer pela vida e se não tiver
positiva no teste de amanhã estou feito, percebes,
quero mesmo acabar o liceu e entrar para
a universidade para vir a ser alguém de quem te possas
orgulhar, não te quero perder, não quero que deixes
de gostar de mim porque me tornei um falhado,
um medíocre
e por isso te peço, Inês, pára de enviar mensagens, pára
de telefonar, se não te apetece estudar vê um dvd ou vai
beber um café com uma das tuas amigas, a Tatiana,
por exemplo
pronto, juro que esta mensagem é a última que te escrevo
e se responderes palavra que saio da net e só me volto
a ligar amanhã, a sério, Inês, estou a falar a sério
deixa-me estudar, por favor
olha, veste a camisola que eu te emprestei e que ainda
deve cheirar a mim, ou põe aquela fotografia que te
mandei ontem no écran do computador e pensa em mim,
faz o que quiseres para atenuar a saudade,
mas deixa-me estudar, Inês
caraças, outra mensagem, o que é que se passa contigo,
não achas que estás a ser um bocadinho melga, aviso-te
que leio só mais esta e depois desligo-me
o quê, não te apareceu o período e tens medo
de estar grávida
eh pá, Inês, não me lixes, porque é que não me disseste
isso há mais tempo, estivemos a tarde toda juntos,
como é que eu vou conseguir ter cabeça para estudar
depois de me dizeres uma cena dessas
tens a certeza, fizeste bem as contas, tu és tão
despassarada com datas
não estás a gozar comigo, pois não, isto não é um truque
para monopolizares a minha atenção, pois não,
tu não és perversa
não sei o que dizer, estava à espera de tudo menos disso,
tu garantiste que não havia perigo, lembras-te, tu disseste
que estavas a tomar a pílula
como é que podes afirmar que te esqueceste um dia,
com essa simplicidade toda, como se fosse a coisa
mais natural do mundo, qual é a tua, Inês, desculpa,
mas és uma irresponsável, se queres dar cabo da tua vida
é lá contigo, mas da minha é que não dás, podes crer
que não vou sacrificar o futuro
por causa de um esquecimento teu
sim, eu sei, é de um ser vivo que se trata, é sobre
o nosso filho que estamos a falar, pois é,
mas eu não quero esse filho, Inês, amo-te
mas não estou preparado para ser pai,
ainda sou muito puto
e tu também, de resto,
por isso se estiveres mesmo grávida temos
de arranjar dinheiro para fazeres um desmancho
responde, Inês, por favor responde, eu sei que estás aí
olha, até pode ser que seja só um atraso,
pode acontecer, pelo menos é o que eu oiço
a minha mãe e as minhas irmãs dizerem às vezes
vá lá, Inês, deixa-te de fitas e atende o telemóvel,
não me deixes assim pendurado
Inês, eu sei que estás aí
Inês
caraças, Inês
pronto, ok, ganhaste, dá-me cinco minutos para morfar
qualquer coisa e vai ter comigo ao café
em frente à tua casa.
Ana Nobre de Gusmão
***
Nasceu em Dezembro de 1952, em Lisboa.
Estudou Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa e Design no ARCO. Vive em Portugal e na Suíça.
Colabora regularmente na revista Elle Portuguesa e na Storm Magazine.
Livros publicados
Delito sem Corpo - Ed. Presença, 1996 (Prémio Máxima Revelação)
Não É o Fim do Mundo - Ed. Presença, 1996
Aves do Paraíso - Asa Ed., 1997
Onda de Choque - Asa Ed., 1999
Das Tripas Coração - Asa Ed., 2000
Até Que a Vida Nos Separe (contos) - Asa Ed., 2002
O Pintor - Asa Ed., 2004