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terça-feira, 2 de março de 2010

A Madeira que não vemos

Não gosto de unanimismos. Como a prática ensina, os unanimismos trazem hipocrisia e cinismo atrelados. Algo que a tragédia da Madeira dispensa. Na verdade, não tenho de simpatizar com os regimes para ser solidário com os seus povos. Choro a Madeira. Mas não a Madeira erguida ao longo de décadas pelo doutor Alberto João Jardim. Essa não me merece qualquer tipo de condescendência ou caridadezinha de telejornal, à boleia de um qualquer heroísmo.
Explico: Jardim construiu no arquipélago um modelo de irresponsabilidade e inconsciência política. Está à vista. Tragicamente. A sua governação - ainda que disfarce algumas benfeitorias - entusiasmou e apadrinhou comportamentos, práticas e medidas que, em casos estudados e documentados, deixaram uma boa parte da região autónoma entregue à sua sorte. E quando a sorte de um povo depende da bondade ou maldade do tempo que faz, o crime tem nome: chama-se incúria. No mínimo.
O doutor Jardim terá dado à Madeira o betão e o folclore de que precisa para a sua sobrevivência política. Por demasiadas vezes - e assim continua - os governos da República lhe toleraram o intolerável. Não falo sequer das dívidas da região ou do saco sem fundo da governação de Jardim, permitido sem escrutínio nem açaime. Falo do olhar turístico que sempre tivemos sobre o problema clínico: como o doutor Jardim é um Carnaval em permanência, ignoramos o desplante e rimos com a alarvidade. O homem e a prática têm, por isso, mais cúmplices do que se julga.
Não se iludam: depois da lama, do entulho, das mortes, dos desaparecidos, dos sem abrigo, a Madeira imprevidente, a Madeira das negociatas e das obras de fachada que tentam domar a natureza, continuará sem julgamento nem condenação. Provavelmente, até ganhará com o regresso à normalidade.
Os outros, os que neste País perdem família numa ponte, num desabar de terras, numa fúria das águas e numa qualquer tragédia anunciada e documentada, têm a sentença escrita: mesmo com toda a solidariedade do mundo e do momento, continuarão sós. Entregues a quem deles não cuida, a quem os ignora quando faz sol. Até à próxima tragédia.Se não perceberam o Haiti, tentem ao menos perceber a Madeira. E aí talvez ainda se vá a tempo de responsabilizar quem merece. Uma vez que seja.
Miguel Carvalho
Jornal Expresso
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Dar dinheiro a Alberto João Jardim, sem qualquer controlo, é o mesmo que dar o "ouro ao bandido". Se não existir uma centralização da contabilização de todos os donativos em dinheiro, que a solidariedade dos "cubanos" do continente recolheu, corre-se o risco de estar a alimentar a ambição faraónica do soba da Madeira e a sua obsessão pelas obras de fachada, pelos festejos carnavalescos e pela promoção do futebol ilhéu.

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