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quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Poema: Marlene Antes de se deitar - por Maria Azenha

NATAL..sem fronteiras - Pintura em acrilico s/tela

Marlene Antes de se deitar

Marlene Antes de se deitar
beija de pé trinta santinhos
que estão na cómoda do quarto

encostados uns aos outros
lado a lado
e a uma boneca de pano
não podem olhar para o espelho

há uma cama muito estreita
e uma mesa de cabeceira
com um candeeiro a fingir de estrela
por cima Do presépio

os livros de Marlene muito magrinhos
vão fazer quase cem anos
estão montados numa estante feita de madeira
com os pãezinhos de Santo António e resmas
de papéis torcidos


o meu pai que já morreu
diz-me que isto é um perfeito Disparate
que um dia vou ser castigada
e obrigada a ler romances de cavalaria


Disparate ou não acredito obviamente
na Ressurreição dos políticos
a confirmar
a televisão de Marlene está sempre no mesmo sítio


Marlene Nunca escreveu uma carta à júlia pinheiro
nem à fátima lopes nem ao sr. aníbal não é o da mercearia
porque em pequena foi obrigada
a fazer cópias e camisolas e outros trabalhos forçados


hoje em dia olha para as pessoas
aos encontrões de santinhos
ela faz muitos cachecóis para o frio
e eu penso que estou a abraçar Marlene
na rua do Crucifixo


depois disto é preciso muito cuidado
passei a usar uma pala lateral nos olhos
faz-me falta esta prótese


Marlene com quem algumas vezes falo
disse-me que as baratas este natal andam muito 
[cabisbaixas
as lojas estão cheias de cócó de pombos
e que nunca mais tinha visto a Branca de neve
só depois percebi a quem se referia


mas para manter o sigilo
- antes ir para a cadeia do que ser reles -
só me vem à memória a assunção esteves
se calhar é uma encarnação do Esteves da Tabacaria
do Álvaro de Campos


Marlene anda muito triste e aborrecida
porque ninguém lhe liga e a santa casa da Misericórdia
manda-lhe comida a mais
a irmã que se chama Carminho
tem muitas vertigens e a mania de partir a cabeça
está quase sempre na prisão do sofá
com o saco de água quente nas mãos
debruado a ponto cruz
vai fazer noventa e nove anos
está cheia de pressa para conhecer s.josé
é por isso que Abel mata Caim que por sua vez ressuscita
[Abel
tenho muita pena de Marlene e do menino Jesus
porque não têm nenhuma doença mental
às vezes penso que devia ter conhecido o Edward Hopper


***«»***
Nota: A “poeta” estilhaçou o Natal, partindo todos espelhos seculares, onde nos mirávamos uma vez por ano, vestidos a preceito, para figurarmos nos presépios de plasticina e olhando para aquela noite, julgando-a diferente das outras, só porque no céu havia um candeeiro a fingir de estrela. A partir deste momento, o melhor será deitar para os caixotes do lixo da Marlene, da irmã da Marlene, que se chama Caminho, da assunção esteves, que não é uma encarnação do Esteves da Tabacaria do Álvaro de Campos, e para a latrina do cavaco as lantejoulas, as luzinhas a piscar e todos os livros com mais de cem anos, que nunca foram lidos.
Aguardemos que a Marlene escreva uma carta à júlia pinheiro e à fátima lopes e que Caim ressuscite Abel, para que as baratas, nos próximos natais, não andem cabisbaixas.

...
Quem foi que disse que a Poesia não era subversão? É na subversão dos temas e das formas que a Poesia se reinventa. Foi o que fez Maria Azenha neste poema, ao desmistificar a festa natalícia e deixando o Natal pelas ruas da amargura, algures, na cidade de Lisboa, num esgoto, entre a Rua da Madalena e a Rua do Crucifixo.
Maria Azenha tem sempre uma forma superior de encher o Verbo, estilhaçando a realidade e encontrando uma nova ordem para os cacos.
Atenção, guardiães da Ordem Pública: a Poesia está viva, porque ela é eminentemente subversiva!...
AC

A "poeta" maria azenha colabora regularmente no Alpendre da Lua.

2 comentários:

Sónia M. disse...

Fantástico!

Mar Arável disse...

Na verdade o Natal vai de novo
começar
até nos olhos sem abrigo

Abraço aos dois