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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A propósito do Testamento Político de D. Luís da Cunha

D. Luís da Cunha
(Busto em mármore deJan Baptist Xavery)
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O testamento político de D. Luís da Cunha é um dos textos políticos doutrinários mais importantes da História de Portugal. Nele, o aristocrata e diplomata, o homem culto e com uma clara visão estratégica, define a nova concepção do poder político para Portugal, importando e adaptando sabiamente as ideias que já estavam a ser implementadas na Europa no século XVIII: um poder autoritário, centrado na figura do monarca, mas que, ao assumir-se como agente conciliador dos interesses contraditórios das várias classes sociais, promovesse o avanço económico, fomentasse a formação de elites esclarecidas e melhorasse o bem-estar geral da população (de acordo com o contexto dominante e a escala de valores da época).
Foi neste caldo político e cultural da Europa de setecentos que ocorreu o advento da primeira revolução industrial e se fomentou o aparecimento de novas concepções do comércio nacional e internacional (a globalização daquele tempo). Foi também durante a época do Iluminismo que começaram a surgir, com os enciclopedistas, as novas ideias liberais, abrindo-se assim o caminho para a grande Revolução Francesa.
D. Luís da Cunha, ao propôr o nome do futuro Marquês do Pombal ao príncipe herdeiro, D. José, para ministro do Reino, e aconselhando uma investidura com ampla delegação de poderes, estava a sugerir a assumpção da figura do “déspota esclarecido”, que, com a razão da Luzes e uma vontade política assente numa férrea autoridade, conduzisse o atrasado e empobrecido Reino pela senda do progresso. E Pombal desempenhou bem esse papel, apesar de ter recorrido a métodos brutais para impor a sua vontade. Mas, com a morte do Rei e com a subida ao trono da beata D. Maria I, o clero e a nobreza – portadores de um atavismo secular, de que ainda hoje sobram resquícios na sociedade portuguesa, impenitentemente avessos ao progresso económico e social, curtos de vista e de inteligência, e avaramente instaladas no cómodo e favorável sistema de rendas, que extorquiam às classes laboriosas – depressa derrubaram Sebastião José de Mello, humilhando-o publicamente, através da sua grotesca exposição aos insultos de uma populaça enfurecida, devidamente açulada dos púlpitos, para o efeito, e acabando por o desterrar para as suas terras de Pombal, onde viria a falecer.
Portugal regrediu novamente, afundando-se no seu endémico e secular marasmo e ostracismo.
O importante texto de D. Luís da Cunha também permite compreender a história política, económica e diplomática do século XVIII, a do Reino e a da Europa. É um documento longo, que se aconselha a ler faseadamente, para, ao mesmo tempo, se poder saborear o magnífico manejo da língua portuguesa por parte do autor, digno herdeiro de Vieira, na elegância e rigor das frases, na lógica discursiva e na profundidade e amplitude das ideias expressas.
Como diplomata, registe-se a sua astúcia e determinação, bem ilustrada no episódio em que o cardeal-ministro Alberoni, de Espanha, lhe voltou ostensivamente as costas durante uma audiência. D. Luís da Cunha não desarmou. Avaliando a fragilidade do governo de Madrid, a braços com um uma guerra com a França, exigiu vigorosamente públicas desculpas pela ofensa feita, na sua pessoa, ao governo de Portugal, e ameaçou com o corte de relações diplomáricas, o que logo foi entendido, pelos espanhóis, como uma ameaça velada ao estabelecimento de uma aliança de Portugal com a inimiga França. D. Luís da Cunha acabou por obter a rectificação do incidente, assim vergando a espinha do cardeal-ministro e domesticando a arrogância da orgulhosa Espanha.
Verney, Ribeiro Sanches, Luís da Cunha e o Marquês do Pombal foram, em Portugal, as figuras marcantes do século das Luzes, figuras estas que, depois, tiveram o seu contrapeso, já no final do século, no sinistro Pina Manique, o célebre Intendente-Geral, que via pedreiros-livres por baixo de todas as pedras das calçadas.
Ocorreu-me esta ideia, a de ressuscitar o documento de D. Luís da Cunha (documento e personalidade, ambos mal conhecidos pela opinião pública) e de tecer breves considerações sobre o Portugal do século XVIII, no momento em que decorre a farsa televisiva da eleição do melhor português de sempre, e onde se assistiu à glorificação de mafiosos célebres, futebolistas e fadistas analfabetos e antigos governantes bolorentos e de má memória e ignorar muitas personalidades ilustres que dignificaram o País.
Eu, por mim, votei no Zé do Telhado, lendário salteador de Entre-Douro e Minho, cuja imagem melhor retrata este país. Para mais, este bandoleiro simpático tinha por hábito redistribuir uma parte do pecúlio dos seus saques pela gente pobre e necessitada. Também Camilo Castelo-Branco, que o conheceu, e sobre ele escreveu, não foi insensível à sua aura.

Alexandre de Castro
Fevereiro de 2007
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Nos próximos dias, serão publicadas, em separado. as três partes que compõem o "Testamento Político de D. Luís da Cunha".

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