Deolinda vai a pé para a
fábrica, porque não tem para o autocarro. Na confecção de Adelaide, há
operárias que “fogem” ao almoço para esconder o facto de não terem para comer.
Aumentar o salário mínimo vai ajudá-las? Sim, desde que não seja moeda de troca
para mais precarização, respondem Farinha Rodrigues, Carvalho da Silva e Pedro
Adão e Silva.
Como é que se vive com os 485
euros do salário mínimo nacional? “Não se vive. Sobrevive-se”, adianta Deolinda
Araújo, empregada na têxtil, 54 anos.
Começou a descontar um ano
antes do 25 de Abril de 1974 que trouxe o primeiro salário mínimo nacional
(SMN) de 3.300 escudos para todos os trabalhadores. Tinha 14 anos, trabalhava
desde os 11. A partir daí foi quase sempre a descer. Quem a imaginaria nesses
tempos de conquistas a ter de ir a pé para a fábrica, quarenta anos depois, por
não ter dinheiro para o autocarro?
"Ao fim do mês seriam mais
32 euros só em passe. Dantes ia de autocarro, o meu marido às vezes também me
ia levar, mas depois a gasolina também começou a aumentar e o carro teve que
ficar encostado", explica.
Começou a ir a pé, a regressar
a pé, Baguim do Monte-Ermesinde, Ermesinde-Baguim do Monte, em Gondomar, todos
os dias, sábados incluídos. “Levo entre 30 a 35 minutos para ir e outros tantos
para vir. Isto desde há dois anos”. Terá sido a altura em que os 485 euros
dela, somados aos 500 euros do marido, começaram a não chegar para pagar as
contas. São 240 euros para a hipoteca da casa, o costume para a água, gás,
electricidade, nem sempre chega para variar na fruta. “O meu filho, que tem 28
anos mas que ainda vive connosco, coitado, às vezes pergunta ‘Ó mãe, por que
não compra uns iogurtes ou uma fruta mais variada?’ e eu fico a olhar para
ele…nem sempre compro”.
Acrescem as contas com os medicamentos,
por conta da diabetes do marido, mas quanto a isso, é como canta o outro,
melhor na farmácia do que no cemitério. Não é isso que a traz deprimida. Nem o
facto de ter deixado de fazer férias e de não saber o que é almoçar ou jantar
fora há pelo menos quatro anos.
"Nem gosto de falar disto.
Sinto uma revolta tão grande. Na fábrica vejo colegas a passar fome. Para
almoçar, temos uma mesa e cada uma leva de casa. Lá mais para o final do mês,
algumas saem da fábrica à hora de almoço para esconder que nem para a sopa
tiveram. Aquelas, por exemplo, que os maridos ficaram desempregados e que
começaram a ter discutimentos em casa. É que se a gente ao menos
pudesse socorre-las… mas também não pode."
Deprime-a a forma como se sente
maltratada. Conta que na sua confecção não se pratica o “banco de horas”. Pelas
piores razões. “Eles não querem. Quem não trabalhar de graça ao sábado de manhã
é logo encostado à parede. Começaram agora a ‘meter’ mais gente, mas continuam
a exigir os sábados de manhã de graça, são quatro horas e meia. Se alguém
reclama, respondem que quem não estiver bem é livre de ir para tribunal. E
ninguém vai, claro. Sabe o que eu queria, menina? Outro 25 de Abril”.
Quarenta anos depois, Deolinda
é apenas um dos perto de 400 mil trabalhadores que auferem o SMN. Entre o
universo de 3,5 milhões de trabalhadores por conta de outrem, o Instituto
Nacional de Estatística conta cerca de um milhão a receber entre 310 a 599
euros líquidos. A receber entre 600 e 899 euros líquidos há quase outros tantos
– 957 mil. Eis o Portugal dos “working poor”, singularidade nacional que faz
com que quem tem as mãos empregadas se confunda, nas estatísticas e na vida de
todos os dias, com os que estão abaixo da linha de pobreza. “Os nossos 11 por
cento de working poor confirmam a ideia de que hoje ter um salário já
não é suficiente para livrar as pessoas da situação de pobreza”, precisa o
especialista em desigualdades e distribuição do rendimento, Carlos Farinha
Rodrigues.
A linha de pobreza mede-se a
partir dos 409 euros por mês. Se aos 485 euros deduzirmos a contribuição de 11%
para a Segurança Social, ficamos pouco acima disso, com cerca de 430 euros. “Um
casal com dois filhos em que ambos ganham o salário mínimo, estão ambos em
situação de pobreza”, concretiza o investigador no Instituto Superior de
Economia e Gestão. É o resultado “da tentativa de forçar o empobrecimento em
Portugal à custa da desvalorização do trabalho”. Um caminho que urge inverter.
Não só por razões de equidade, mas porque “o aumento do SMN é hoje condição
necessária para o crescimento económico”.
Num levantamento que divulgou
esta semana, o economista Eugénio Rosa concluiu que, para conferir aos
trabalhadores o mesmo poder de compra que ganharam em 1974, seria necessário
aumentar o SMN para os 584 euros. O politólogo Pedro Adão e Silva também lembra
que boa parte das desculpas para não aumentar o salário mínimo acabaram em
2006. “Uma das razões por que foi possível alcançar o acordo sobre o aumento do
salário mínimo foi a criação do Indexante dos Apoios Sociais. Antes disso, a
remuneração mínima era o valor de referência das prestações sociais, o que
fazia com que se o salário mínimo aumentasse tivessem que aumentar também as
prestações sociais todas”, recorda.
PUBLICO (da
reportagem de Natália Faria)
***«»***
Sangra o coração, ao ouvir o desabafo de
Deolinda, a que se juntam os abafados gritos de desespero de todas as “Deolindas”
do meu país, que, mesmo trabalhando até ao limite da escravidão (as quatro
horas de sábado não são remuneradas), não conseguem sair da linha limite da
pobreza.
Que país é este, que admite esta humilhação
gritante, ao saber-se que existem milhares de trabalhadores honrados que não
ganham o suficiente para o seu almoço nem para o transporte para o seu local
de trabalho!...
É urgente fazer o “25 de Abril”, que a Deolinda
reclama, com toda a revolta que lhe enche a alma. É urgente!... Mas terá de ser
um “25 de Abril” sem cravos e sem brandos costumes, para que o nosso futuro
coletivo não seja mais assombrado pelos crápulas que nos governam e pela matilha
que nos explora.
AC
Sem comentários:
Enviar um comentário