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domingo, 13 de abril de 2014

Deolinda quer outro “25 de Abril”...


Deolinda vai a pé para a fábrica, porque não tem para o autocarro. Na confecção de Adelaide, há operárias que “fogem” ao almoço para esconder o facto de não terem para comer. Aumentar o salário mínimo vai ajudá-las? Sim, desde que não seja moeda de troca para mais precarização, respondem Farinha Rodrigues, Carvalho da Silva e Pedro Adão e Silva.
Como é que se vive com os 485 euros do salário mínimo nacional? “Não se vive. Sobrevive-se”, adianta Deolinda Araújo, empregada na têxtil, 54 anos.
Começou a descontar um ano antes do 25 de Abril de 1974 que trouxe o primeiro salário mínimo nacional (SMN) de 3.300 escudos para todos os trabalhadores. Tinha 14 anos, trabalhava desde os 11. A partir daí foi quase sempre a descer. Quem a imaginaria nesses tempos de conquistas a ter de ir a pé para a fábrica, quarenta anos depois, por não ter dinheiro para o autocarro?
"Ao fim do mês seriam mais 32 euros só em passe. Dantes ia de autocarro, o meu marido às vezes também me ia levar, mas depois a gasolina também começou a aumentar e o carro teve que ficar encostado", explica.
Começou a ir a pé, a regressar a pé, Baguim do Monte-Ermesinde, Ermesinde-Baguim do Monte, em Gondomar, todos os dias, sábados incluídos. “Levo entre 30 a 35 minutos para ir e outros tantos para vir. Isto desde há dois anos”. Terá sido a altura em que os 485 euros dela, somados aos 500 euros do marido, começaram a não chegar para pagar as contas. São 240 euros para a hipoteca da casa, o costume para a água, gás, electricidade, nem sempre chega para variar na fruta. “O meu filho, que tem 28 anos mas que ainda vive connosco, coitado, às vezes pergunta ‘Ó mãe, por que não compra uns iogurtes ou uma fruta mais variada?’ e eu fico a olhar para ele…nem sempre compro”.
Acrescem as contas com os medicamentos, por conta da diabetes do marido, mas quanto a isso, é como canta o outro, melhor na farmácia do que no cemitério. Não é isso que a traz deprimida. Nem o facto de ter deixado de fazer férias e de não saber o que é almoçar ou jantar fora há pelo menos quatro anos.
"Nem gosto de falar disto. Sinto uma revolta tão grande. Na fábrica vejo colegas a passar fome. Para almoçar, temos uma mesa e cada uma leva de casa. Lá mais para o final do mês, algumas saem da fábrica à hora de almoço para esconder que nem para a sopa tiveram. Aquelas, por exemplo, que os maridos ficaram desempregados e que começaram a ter discutimentos em casa. É que se a gente ao menos pudesse socorre-las… mas também não pode."
Deprime-a a forma como se sente maltratada. Conta que na sua confecção não se pratica o “banco de horas”. Pelas piores razões. “Eles não querem. Quem não trabalhar de graça ao sábado de manhã é logo encostado à parede. Começaram agora a ‘meter’ mais gente, mas continuam a exigir os sábados de manhã de graça, são quatro horas e meia. Se alguém reclama, respondem que quem não estiver bem é livre de ir para tribunal. E ninguém vai, claro. Sabe o que eu queria, menina? Outro 25 de Abril”.
Quarenta anos depois, Deolinda é apenas um dos perto de 400 mil trabalhadores que auferem o SMN. Entre o universo de 3,5 milhões de trabalhadores por conta de outrem, o Instituto Nacional de Estatística conta cerca de um milhão a receber entre 310 a 599 euros líquidos. A receber entre 600 e 899 euros líquidos há quase outros tantos – 957 mil. Eis o Portugal dos “working poor”, singularidade nacional que faz com que quem tem as mãos empregadas se confunda, nas estatísticas e na vida de todos os dias, com os que estão abaixo da linha de pobreza. “Os nossos 11 por cento de working poor confirmam a ideia de que hoje ter um salário já não é suficiente para livrar as pessoas da situação de pobreza”, precisa o especialista em desigualdades e distribuição do rendimento, Carlos Farinha Rodrigues.
A linha de pobreza mede-se a partir dos 409 euros por mês. Se aos 485 euros deduzirmos a contribuição de 11% para a Segurança Social, ficamos pouco acima disso, com cerca de 430 euros. “Um casal com dois filhos em que ambos ganham o salário mínimo, estão ambos em situação de pobreza”, concretiza o investigador no Instituto Superior de Economia e Gestão. É o resultado “da tentativa de forçar o empobrecimento em Portugal à custa da desvalorização do trabalho”. Um caminho que urge inverter. Não só por razões de equidade, mas porque “o aumento do SMN é hoje condição necessária para o crescimento económico”.
Num levantamento que divulgou esta semana, o economista Eugénio Rosa concluiu que, para conferir aos trabalhadores o mesmo poder de compra que ganharam em 1974, seria necessário aumentar o SMN para os 584 euros. O politólogo Pedro Adão e Silva também lembra que boa parte das desculpas para não aumentar o salário mínimo acabaram em 2006. “Uma das razões por que foi possível alcançar o acordo sobre o aumento do salário mínimo foi a criação do Indexante dos Apoios Sociais. Antes disso, a remuneração mínima era o valor de referência das prestações sociais, o que fazia com que se o salário mínimo aumentasse tivessem que aumentar também as prestações sociais todas”, recorda.
PUBLICO (da reportagem de Natália Faria)

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Sangra o coração, ao ouvir o desabafo de Deolinda, a que se juntam os abafados gritos de desespero de todas as “Deolindas” do meu país, que, mesmo trabalhando até ao limite da escravidão (as quatro horas de sábado não são remuneradas), não conseguem sair da linha limite da pobreza.
Que país é este, que admite esta humilhação gritante, ao saber-se que existem milhares de trabalhadores honrados que não ganham o suficiente para o seu almoço nem para o transporte para o seu local de trabalho!...
É urgente fazer o “25 de Abril”, que a Deolinda reclama, com toda a revolta que lhe enche a alma. É urgente!... Mas terá de ser um “25 de Abril” sem cravos e sem brandos costumes, para que o nosso futuro coletivo não seja mais assombrado pelos crápulas que nos governam e pela matilha que nos explora.
AC

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