Carta Aberta ao Povo do meu país
Foi a olhar este edifício da janela do meu
quarto que me conheci como gente, há quase 55 anos.
55 anos que hoje revejo e em que faço o balanço,
na balança da memória do que ganhei nas muitas lutas travadas e o que perdi
nelas.
Nasci neste país, poderia ter nascido noutro.
Nasci no seio de uma família de classe média. Os
remediados como se dizia na época.
Mas os meus antepassados eram gente do campo
ligados à terra ou pela lavoura ou pela pastorícia.
Não podia ter mais orgulho do que sinto pelas
minhas origens humildes e simples.
Orgulho de ter sido neta de pastores e de
lavradores, de uma avó que lavava roupa na ribeira e guardava ovelhas e que um
dia deixou a sua aldeia na Serra da Estrela para vir para Lisboa, para a
capital fazer-se à vida que eram oito irmãos e todos passavam fome.
Orgulho de ter sido neta de um homem que descia
às entranhas da terra para instalar os motores que traziam à superfície o
carvão, as pirites, o volfrâmio e o urânio e que vestia ganga e calçava botas
ferradas quando de braço dado com os seus companheiros nas minas marchava em
manifestações de protesto para reclamar o direito a salários dignos e a
cuidados médicos àqueles a quem os pulmões rebentavam cheios do pó da terra...
a mais dura das profissões deste mundo.
Orgulho por ser neta de um homem que deu a vida
e trocou a sua liberdade e conforto pelo que era justo.
Um homem de quem herdei o nome e a vontade
férrea de não ceder submissa ao despotismo, de recusar a caridadesinha e a
pequenez de espírito, um dos muitos mártires da ditadura de Salazar.
Foi a olhar este edifício de arquitectura
redonda que eu percebi a redondez do mundo que me rodeia e os meus olhos se
abriram para a dureza da vida de muitos e para a injustiça que o meu povo tem
sofrido ao longo de gerações.
Foi à porta deste edifício e pelas ruas em redor
que eu vi ao longo de anos os mais pobres desta minha cidade a pedir esmola ou
a correr de canasta à cabeça a fugir da polícia que lhes queria impedir de
ganhar o pão para os filhos.
Foi a olhar este edifício que na madrugada de 25
de Abril de 1974 eu percorri as ruas em redor subindo ao Instituto Superior
Técnico para me encontrar com uma professora que me estava a preparar para o
meu exame de matemática do antigo quinto ano dos liceus e me deparei com os
chaimites que percorriam as ruas e que nos traziam o cheiro da liberdade
desejada.
Sim, foi há 40 anos que eu tive um vislumbre do
sonho que levou cedo demais o meu avô que nunca abracei, o vislumbre de um país
que todos os que me antecederam sonharam, o sonho de uma vida digna em que cada
um possa ser feliz e ser livre vivendo com dignidade até morrer e ao morrer,
morrer com dignidade sem ter de estender a mão à caridade para levar um pedaço
de pão à boca ou ter o seu corpo atirado para a vala comum como se faz aos
cães!
Sim foi há 40 anos que então adolescente mas já
consciente e atenta ao meu redondo mundo de horizontes infinitos eu gritei de
alegria e corri de braço dado com os sonhos até ao Terreiro do Paço e me vi no
meio do meu povo, inquieto e expectante, indiferente aos tiros que por nós
poderiam passar (como passaram no Largo do Carmo) e abraçámos o sonho e
beijámos rostos que mal conhecíamos e gritávamos fora com a ditadura, viva a
liberdade!
Foi há 40 anos que subi as ruas em redor e por
vielas e becos cheguei ao Largo do Carmo, trepei às árvores tal como fazia na
aldeia dos meus bisavós em criança e fui criança/mulher inteira, verdade e
grito, esperança e asas de andorinha a tentar voos mais longos e mais belos.
Foi há 40 anos que vi um homem de pé, naquele
largo a dar o peito às balas, na sua inocência generosa.
Foi há 40 anos que todo o meu povo que abracei
naquele largo, naquele dia que parecia eterno, todo esse meu povo, sem medo de
morrer por esse sonho, demos o peito e o rosto e teríamos dado a vida se assim
fosse a vontade dos tiranos.
Ninguém arredou pé.
Ninguém temeu.
Ninguém cedeu.
Ninguém daquele meu povo que abracei naquele
largo, desistiu ou baixou os braços, ou estendeu a mão implorando caridade.
ONDE ESTÁS TU POVO MEU, ONDE ESTÁ AQUELA CORAGEM
DE HÁ 40 ANOS?
ONDE ESTÃO OS ROSTOS E OS RISOS E OS SONHOS QUE
ABRAÇÁMOS NAQUELE DIA QUE NOS PARECIA ETERNO?
Sim foi há 40 anos que nos abraçámos e fomos um
povo de que me orgulhei pertencer, um povo de gente sem medo nos olhos porque
estava cansado de ter medo e de ter fome e de estender a mão à caridade ou de
fugir de canasta à cabeça da polícia que nos impedia de viver, de ganhar o pão
de cada dia.
Sim foi há 40 anos que nos abraçámos e deixámos
de ser estranhos porque éramos todos irmãos da mesma Mátria onde alguns poucos
nos roubavam a dignidade e nos pediam a vida lá longe em terras que não eram
nossas, para que esses poucos vivessem bem, comessem melhor, tivessem casas e
carros e vida!
ONDE ESTÁS TU POVO MEU, ONDE ESTÁ AQUELA CORAGEM
DE HÁ 40 ANOS?
PARA ONDE VOARAM AS ANDORINHAS QUE FAZIAM NINHO
NOS BEIRAIS DOS NOSSO SONHOS?
PORQUE DESISTISTE TU POVO MEU DE LUTAR, DE
EXIGIR E RECLAMAR O TEU PAÍS, A TUA MÁTRIA, A TUA VIDA E DIGNIDADE?
Eu já não posso correr contigo de braço dado
pelas ruas e vielas da cidade onde nasci. A doença tolhe-me as pernas que antes
subiam comigo às árvores do Largo do Carmo.
Eu já mal posso dar abraços mas ainda luto, do
jeito que eu sei e que eu posso e dou o rosto e o peito às balas se assim for a
vontade dos tiranos, mas não me peçam que ajoelhe, nem me peçam que seja
submissa, nem me obriguem a estender a mão à caridade porque não me vergo e
hei-de morrer de pé ou a voar com as andorinhas, mas não me vendo, não venderei
a minha dignidade!
Esta sou eu, Leonilde Santos de meu nome, Noélia
de Santa Rosa na escrita, mas portuguesa inteira e sempre em luta.
4 comentários:
Há flores imperecíveis
Um texto brilhante e comovente, que nos abrasa a memória!...
Fico aqui, ao lado dessa mulher que quase podia ser eu.
A esperança nunca morre!
Como eu me revejo neste texto mesmo sendo de Lisboa...
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