Mais
que para celebrar, será de aproveitar esta efeméride para reflectir sobre os
caminhos que até aqui nos trouxeram. Caminhos onde inegavelmente não será
difícil identificar alguns progressos e alguns sucessos, a par de erros, uns
que nós próprios cometemos, outros que resultam do sistema global em que nos
inserimos e no qual nos sujeitamos a um jogo de dados viciados, em mesas que
nós não vemos, e onde se sentam jogadores sem rosto.
E,
por muito que puxemos pelas ganas da alma, não descortinamos razões para
grandes manifestações de optimismo. A não ser o que nos é permitido ler no fio
do devir histórico, tanto da humanidade como da nação portuguesa: de que, pesem
todas as vicissitudes, mais tarde ou mais cedo, havemos de reencontrar o nosso
caminho, o qual nos levará, assim esperamos, a um mais elevado patamar de
progresso material, social e humano. Porque o mundo não pára, bem sabemos.
O
25 de Abril, independentemente da opinião de cada um é, inegavelmente, pelo
menos pelas suas consequências, um facto histórico de determinante dimensão,
uma ruptura, um traço vertical na história nacional com direito ao estatuto de
referencial de um antes e um depois.
Nós,
os militares de Abril, cuidámos do trabalho de casa. Fizemos um correcto estudo
da situação, planeámos e executámos com reconhecida eficácia, e alguma sorte,
admitamos, um cuidadoso plano de operações. Podem negar-nos qualquer auréola de
heroísmo; mas não nos podem negar uma boa dose de coragem e de entrega àquilo
que, a partir dum momento crucial, tomámos como uma missão, quando tivemos que
nos despedir das nossas mulheres e dos nossos filhos e rumámos a um destino
prenhe de incertezas.
Derrubámos
a ditadura; segurámos quase até ao limite a magna questão colonial com vista à
sua posterior resolução; avançámos com as medidas mais prementes no sentido de
atacar o atraso e o que na altura pareciam ser os bloqueios do desenvolvimento
do país. Apresentámos então um programa mínimo que passou a ser conhecido como
o “Programa dos 3D”. E, programa mínimo, diga-se, e de curta duração, porque
ninguém, honestamente, nos poderá acusar de termos ficado agarrados ao poder.
Hoje
é bem claro que a seguir à grande, à inolvidável Festa, todos nós, tanto civis
como militares, cometemos erros; só não os comete quem fica parado e à espera
do que vier a seguir. Só que a História não admite “ses” nem se ocupa de
julgamentos e consequente atribuição de culpas. Os erros e os sucessos
alcançados poderão servir-nos, isso sim, para melhor entendermos o presente e
construir uma ideia, ou melhor, um projecto de futuro. Que é o que nos parece
que hoje não temos, de todo, enquanto país e nação orgulhosa de cerca de 900
anos de história e do seu decisivo contributo para o progresso da humanidade.
Pois,
se atentarmos novamente no tal programa mínimo dos 3D; se deixarmos de lado,
como facto irremediável, a Descolonização; se pensarmos no Desenvolvimento como
uma sucessão de altos e baixos, mas sempre – e até parece que endemicamente –
abaixo da linha de água, então que dizer da Democratização, do nosso sistema
democrático progressivamente desfigurado e descaracterizado por interesses que
nada têm que ver com a democracia e com os valores que lhe dão forma. E assim,
viemos dar a esta “encruzilhada sem caminhos”. Temos a liberdade, é certo, esse
supremo bem. Mas “Só há liberdade a sério…” (Sérgio Godinho).
Bem
cedo fomos sendo alertados, primeiro por Maria de Lurdes Pintassilgo e mais
tarde pelo Prof. Boaventura Sousa Santos, entre outros, para alguns visíveis
sinais de enfermidade, chegando ao ponto de nos aconselharem a “Reinventar a
Democracia”.
Nós,
enquanto cidadãos e Militares de Abril, qualificação de que muito nos
orgulhamos, continuaremos afincadamente agarrados, agora já não aos 3D, que
tiveram o seu legítimo lugar histórico e melhor ou pior se cumpriram, mas aos
valores perenes que foram a bandeira da mãe de todas as revoluções da Época
Moderna.
Utopia?
Já houve quem decretasse a morte de Deus, quem declarasse o fim da História e
quem anunciasse o enterro das Ideologias. Na impossibilidade de garantir a sua
morte, houve ainda quem se apressasse a apontar a inutilidade ou os perigos das
utopias, esquecendo-se de que é de sonhos e utopias que se alimenta a alma dos
homens.
Penso
que é possível e realizável um mundo bem melhor do que aquele que temos, e aí
está, penso eu, uma legítima esperança, uma bela utopia. Um mundo estruturado
nos sólidos pilares da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, caso para
perguntar que mal farão utopias como esta. E, mais que de esperança, trata-se
duma questão de fé. E dizem-nos que a fé pode mover montanhas.
O
25 de Abril ainda anda por aí. E tomamos como nossa a obrigação de mantê-lo
vivo. Antes como hoje, nós fazemos questão de cuidar do trabalho de casa,
usando os espaços de liberdade para denunciar e alertar, sempre que os valores
de Abril estiverem em causa. E passar às camadas mais jovens os princípios
enformadores de uma das revoluções mais lindas de todos os tempos. Olhe-se para
o que vai por esse mundo fora…40 anos! Tanto e tão pouco tempo!...
Viva
o 25 de Abril!
Viseu,
Abril 2014
***«»***
Não
resisto à indiscrição de reproduzir aqui a mensagem que acompanhou este texto
do meu amigo e antigo colega do liceu, Diamantino, porque não posso
perder a oportunidade de deixar registado o testemunho direto sobre as
operações militares daquela madrugada redentora, de um dos capitães de Abril,
que nelas participou.
Verdadeiros
«obreiros» da Liberdade, os capitães de Abril já conquistaram, pela sua
coragem, determinação, abnegação e desprendimento, o lugar no “panteão” da
nossa memória coletiva. E o povo português não pode perder, pela traição de
alguns, aquilo que ganhou com a generosa revolução dos cravos.
"Amigo Alexandre
Admitindo que te possa
interessar, junto envio, em anexo, o texto que preparei e li no final do Almoço-Comemorativo
dos 40 Anos do 25 de Abril perante um auditório que teria para cima de 400
pessoas, realizado no Quartel do RI 14, de Viseu, unidade que tomámos no
princípio da Madrugada de 25 de Abril de 1974 e donde parti com a força que
depois se veio a juntar com outras de Aveiro e Figueira da Foz e que, uma vez
juntas, constituíram o Agrupamento “November", cujo comando me tinha sido
confiado e que tinha como objectivos, primeiro o forte-prisão de Peniche e
depois Lisboa.
Nas circunstâncias
locais, estavam ali militares, ex-militares, Deficientes das Forças Armadas, Órgãos
do Poder Local e outros elementos de todas as cores partidárias locais, assim,
num ambiente de "grande unidade", a que não podíamos nem devíamos,
penso eu, dizer que não, face ao argumento de que o 25 de Abril não é
propriedade de ninguém, se estivermos a falar de forças que, pelo menos
formalmente sejam consideradas democráticas.
Durante o almoço houve
animação musical, da nossa, da boa, e acabámos todos a cantar, com evidente
entusiasmo, o "Grândola, Vila Morena". Não. Não estava lá o Relvas.
25 de Abril sempre!
Um abração
Diamantino"