O SARAIVA
Havia em tempos, no Porto, um rapaz estudante, vindo das províncias do Norte, chamado Saraiva. Este rapaz tornara-se notável entre os companheiros pela certeza da própria perspicácia e a sua igual certeza de seus talentos de declamador. A cada frase, por simples que fosse, que lhe parecesse envolver uma mentira, tomava a mentira como dirigida inutilmente contra a rocha da sua esperteza; e, levando o indicador direito à pálpebra do olho direito, descia-a, no gesto dos alacres, e dizia ao interlocutor, em aviso e ameaça alegre, «Eu sou o Saraiva!» E o outro ficava sabendo que o não conseguira enganar. O indicador erguia-se livre.
Esta ciência certa, considerada pelos outros rapazes como ridícula em si-mesma, levou-os a combinar, servindo-se da preocupação que o Saraiva tinha de declamador, uma cena cómica, destinada a, de vez, pôr o Saraiva em salmoura social. Sabendo o horror do ridículo, que estava latente naquela constante preocupação de que não era enganado, combinaram com várias raparigas das suas relações, de boas famílias e condição decentíssima, uma sessão em casa dos pais de umas d'elas, para a qual convidariam o Saraiva para declamar. E estava combinado que, apresentado o Saraiva e convidado a mostrar seus dotes de declamador, eles fossem, por fim, reconhecidos com uma gargalhada geral. D'esta, fixaram bem, o Saraiva se não escaparia, e ficariam pagos de tanta irritação de certeza.
Expuseram ao Saraiva que havia várias senhoras que gostariam de o ouvir declamar, pois lhes constara o que valia na matéria, e com ele estabeleceram que o apresentariam em casa d'essas senhoras, podendo ele aparecer, em tal noite e a tais horas.
Grato, o Saraiva acedeu e a combinação ficou feita. Sucede, porém, que, chegado a casa, começou a meditar no convite, e, desde logo, a desconfiar d'ele. «Ali há coisa», pensou o Saraiva. E, sozinho, diante do espelho, levou o indicador direito ao olho direito, no gesto baixante da esperteza, «Mas eu sou o Saraiva!» apontou para si mesmo.
E meditou, «Que diabo será a partida?». Não tardou que descobrisse. Tratava-se de encher uma casa qualquer de uma quantidade de meretrizes, dispostas com aparência de senhoras e meninas, e de o convidar (a ele Saraiva!) para ir fazer diante d'elas o papel de recitador. Conclusão lógica, conclusão natural. E o Saraiva tomou mentalmente as suas precauções.
Chegou a noite, e chegou o Saraiva. E, junto com os vários camaradas, foram dar à casa onde estavam reunidas as senhoras todas que os esperavam. Para entrada e deslumbramento, os apresentantes, aberta subitamente a porta da sala, que se revelou cheia de senhoras, apresentaram, «Minhas senhoras, o sr. Saraiva!», com o ar de quem apresenta um dos homens célebres do mundo.
Então o Saraiva, alacre, deu um pulo para o meio da sala, e braços abertos, gritante e alegre, bradou para as senhoras todas, «Eh, putedo!»
E depois, voltando-se a rir para os apresentantes lívidos, inclinou a cabeça e levou à eterna pálpebra direita o eterno indicador direito, «Vocês esqueceram-se que eu sou o Saraiva»...
Moralidade
1. Não ser Saraiva.
2. Na dúvida ser Saraiva, porque aqui o Saraiva foi o parvo e os outros é que ficaram atrapalhados.
Quando uma nação crê firmemente em si mesma, humilha os outros ainda quando se engana e é ridícula. Na dúvida, mais vale ser Saraiva.
Porque é preciso não esquecer o resultado prático de tudo isto. As raparigas ficaram insultadas, os rapazes ficaram envergonhados: quem ficou vencedor foi o Saraiva.
Fernando Pessoa
1932?
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.- 268.
«Fábulas para as Nações Jovens».
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