No futuro, os historiadores serão por certo severos em relação ao papel desempenhado pela Economia nos acontecimentos que estamos a viver.
Refiro-me não à Economia no seu melhor, plural e aberta ao debate e à reflexão crítica, mas à Economia monolítica que se separou da ética e da política para se transformar numa “ciência dos meios” ao serviço de finalidades que são tomadas como inevitáveis e, por isso, não são discutidas. Refiro-me à Economia que para ser “ciência” se tornou afinal uma aritmética desumana, cujos teoremas tendem a favorecer invariavelmente políticas convenientes a minorias privilegiadas.
Os historiadores analisarão em detalhe esta estranha “ciência”. Olharão para a inverosímil “teoria dos mercados eficientes” nascida em Chicago nos anos 60 do século passado para servir de fundamento à Nova Arquitectura Financeira – desregulada e tóxica - que levou o mundo à beira do abismo; deter-se-ão nas utopias do fim da história e da geografia e na liberdade dos capitais sem contrapartida na liberdade das pessoas; espantar-se-ão com a insistência nas terapias de austeridade como solução em contextos recessivos e verificarão que essas terapias aprofundaram a crise no preciso momento em que ela dava sinais de abrandamento. Falarão, em suma, da estranha sobrevivência de teorias estranhas, contra todas as evidências, e da responsabilidade das ideias preconceituosas na produção de acontecimento adversos.
Se tivermos sorte, os historiadores do futuro reservarão uma nota de pé de página para os economistas e outros cientistas sociais que antes e depois destes acontecimentos exprimiram a sua divergência com esta Economia e que procuraram, muitas vezes sem sucesso, preservar o pluralismo e as condições de debate quer na academia quer no espaço público; que defenderam e praticaram uma ciência económica aberta tanto à consideração das finalidades e valores que vale a pena prosseguir quanto à descoberta dos melhores meios para os realizar.
Se tivermos mesmo muita sorte, os historiadores do futuro poderão até referir a Conferência “Economia Portuguesa: uma Economia com Futuro”!
Mas deixemos o lugar na história e outras vaidades pequeninas e entreguemos a História aos historiadores do futuro, limitando-nos agora a reconhecer que a nossa responsabilidade – a responsabilidade de quem estuda e ensina economia - é neste momento muito grande.
Espera-se de nós uma intervenção informada, ma medida do possível, desapaixonada, capaz de ajudar a sociedade a considerar os problemas, as finalidades e as soluções alternativas para os problemas com que se confronta. Essa expectativa está bem patente no interesse que esta Conferência suscitou, manifesto no número, qualidade e diversidade dos participantes hoje aqui presentes.
Nesta Conferência quisemos reunir e pôr em diálogo pontos de vista distintos mas que comungam entre si o facto de não se conformarem nem com a lógica das inevitabilidades nem com a submissão do destino colectivo a forças cegas dos “mercados”.
Na nossa diversidade, incumbe-nos hoje, e nos dias que se seguirão, procurar respostas para a pergunta que paira nesta sala: “Como é que vamos sair disto?”.
Como é que vamos sair de uma trajectória de recessão induzida pela austeridade que, podendo reduzir a base fiscal mais do que o antecipado em cenários irrealistas, nos levaria, de ‘derrapagem’ em ‘derrapagem’, como na Grécia, à descoberta permanente de “desvios colossais” e à sujeição a novas e infindáveis exigências dos credores?
Como é que vamos evitar, no imediato, a catástrofe social eminente decorrente de um desemprego crescente e não apoiado?
Como é que vamos afirmar, perante quem decide na UE, a nossa recusa da via punitiva para a redução do défice e da dívida que não reduz a dívida, pode não reduzir o défice e empobrece Portugal e acentua a distância que o separa do centro da Europa?
Como é que vamos manifestar a nossa rejeição de uma configuração institucional do Euro que serve alguns e não todos os seus membros?
Como é que vamos desenvolver formas de acção colectiva, de associação, de solidariedade e de iniciativa económica capazes de dar resposta às necessidades mais prementes?
Como é que vamos construir caminhos para a Economia do Futuro para lá da situação de emergência em que nos encontramos hoje - uma economia menos desigual, menos precária, mais solidária e mais sustentável ambiental e socialmente?
A nossa perspectiva é a de cientistas sociais, de investigadores que cultivam o primado da razão, do bom argumento e da observação do mundo, relativamente ao dogma, ao poder ou ao interesse particular. Tudo isto integra o ethos da ciência que é preciso reafirmar no tempo de todas as sujeições às prioridades “dos mercados”.
Mas a ciência que praticamos, que procuramos praticar com mente aberta e rigor, não é um compêndio de verdades inquestionáveis. É antes uma procura prosseguida por caminhos diversos, plural portanto; livre, sujeita apenas à disciplina do debate racional, da prova, ou argumento, e da contraprova. Não é também um convento, ou uma “torre de marfim”. É um processo que deve decorrer no espaço público, em debate aberto acerca dos fins que queremos prosseguir, dos valores que procuramos afirmar e dos meios a adoptar.
A nossa ciência é uma ciência social cidadã. Por isso mesmo quisemos que esta Conferência fosse aberta a um público diversificado.
A economia diz respeito a todos e o conhecimento acerca da economia deve beneficiar do contributo de todos. Eu próprio, que sou economista e tenho portanto uma noção muito clara dos limites do conhecimento dos economistas, acredito que economia é importante demais para ser deixada aos economistas.
Estou certo de que os oradores convidados e os presentes nesta Conferência darão testemunho, nas suas convergências e divergências, da possibilidade e vontade de procurar e encontrar pela discussão inteligente, soluções para os problemas que neste momento nos preocupam a todos. Nos ajudem, em suma, a descobrir como é que vamos sair disto.
*José Castro Caldas
Economista
(Comissão Permanente "Economia com Futuro", CES Un. de Coimbra)
Discurso da Sessão de Abertura do colóquio "Economia portuguesa: uma economia com futuro", realizada em Lisboa, em 30 Setembro de 2011, na Fundação Gulbenkian.
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