Eclipse sem amor |
Quando falamos de politica, de economia, da crise
e do Estado Social, normalmente, procede-se a uma análise holística, considerando
a plenitude da realidade integral, o que é necessário, mas omitindo-se uma outra
abordagem, que se apoia na noção de que o todo é a soma das partes.
Numa recente intervenção minha, num outro
espaço, a propósito das políticas assassinas que estão a ser desenvolvidas,
tendo como alvo os idosos pobres e remediados, recebi uma missiva de uma
leitora, a colocar a questão numa outra perspetiva, que não deixa de ser
pertinente e verdadeira, e que eu, como causa, remeto para a cultura de
egoísmo, que o sistema foi inculcando nas pessoas.
Trata-se de um grito, que nasceu do silêncio da
solidão. É um protesto sentido, ao qual eu quero, aqui, dar amplitude e
ressonância. Estes testemunhos individuais são muito importantes, se, no meio
de toda a nossa racionalidade e intelectualidade, quisermos perceber o que está
a passar-se no nosso país.
Eis o texto:
Caro Alexandre:
Pois eu sinto mais que tristeza, vergonha e
revolta.
Fui atirada para a mais completa miséria pela
falta de valores morais de algumas pessoas e pela doença que ando a combater
faz anos.
Hoje vejo-me sem nada, doente e desgastada e,
pior que tudo, rodeada de gente mais que
ignorante, pois é gente sem formação e sem valores humanos.
Fala-se muito de povo, mas eu, que vivo no meio
desse povo, tenho visto do que são capazes.
Pouca ou nenhuma solidariedade, pouca ou nenhuma
noção do que são direitos humanos, muita indiferença pelo sofrimento alheio,
muita arrogância misturada com o egoísmo puro e duro.
Só para ter noção do que falo, no prédio onde
resido (prédio camarário) eu e a senhora, que mora no andar por cima de mim,
ambas temos dificuldades motoras.
Na entrada do prédio existem umas escadas e um
espaço útil suficiente que daria para a construção de uma rampa suave para a
entrada do prédio.
Este edifício que tem mais de 40 anos, não tem
elevador.
Quer eu quer a minha vizinha somos quase
prisioneiras, nas nossas casas.
Pois na terça feira passada, durante a reunião
de moradores do prédio com a representante da Câmara, falei sobre a hipótese de
se construir a tal rampa suave para nos ser menos difícil o acesso, já que
temos ainda de subir as escadas interiores do prédio, embora no interior exista
um corrimão que nos auxilia um pouco.
Resposta de uma das moradoras (residente no rés
do chão): era o que mais faltava! Já agora porque é que não pede também um
elevador? Suba as escadas que só lhe faz é bem. Não se vai construir uma rampa
só por causa de uma ou duas pessoas!
Respondi-lhe: E porque não? Porque você tem hoje
duas boas pernas para subir dois lances de escada, mas amanhã mesmo pode
acontecer-lhe ficar agarrada a uma cadeira de rodas e nessa altura quero vê-la
a pedir ajuda a alguém e a receber de resposta que não tem direito algum a sair
de casa.
É com este "povo" com que eu sou
confrontada todos os dias.
Hoje mesmo nos CTT's, uma senhora achou por bem
sentar-se ao meu lado num dos bancos e empurrar-me de tal maneira que quase me
fazia cair ao chão.
Nem mesmo vendo-me de bengala se deu ao trabalho
de procurar um lugar onde sentar-se sem me atropelar.
Empurra-se um doente para a valeta, não se pára
nas passadeiras, se estiver a chover somos literalmente banhados em água suja
pelos condutores, reclama-se se alguém com mobilidade reduzida demora a
atravessar a passadeira de peões, não se dá lugar nos transportes públicos,
reclama-se de tratamento prioritário a deficientes motores e invisuais,
estacionam-se os carros nos lugares marcados para deficientes, goza-se com a
desgraça dos que caíram na miséria por culpa das belas reformas do estado
social e não se ajudam os mais carenciados de forma a preservar a nossa
dignidade.
Da distribuição de "ajuda alimentar"
nem falo, porque aquilo que assisto e sofro na pele é de tal forma gritante que,
se começar a descrever, dava, não um filme, mas um seriado.
Enfim.
Já antes de mim, um senhor que dava pelo nome de
Vitor Hugo, escreveu uma bela obra que representa e bem o que é o povo na sua
real veracidade. A obra chama-se "Os miseráveis" e nela vê-se o
retrato do que é o povo-povo, produto de uma sociedade onde o único valor é o
do capital.
Quanto tens, quanto vales, nada tens, nada
vales!
Dignidade, direitos humanos, solidariedade, são
tudo palavras muito bonitas, mas não passam disso: palavras.
Faltam actos, faltam valores e falta acima de
tudo empatia e noção de que para se cair na pobreza total, basta um segundo!
LS
1 comentário:
A questão não é o ter é o ser
basta um fósforo
para se ver a diferença
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