ESTA JANGADA DE MADEIRA EM QUE EMBARCÁMOS
Aqui há uns tempos, ao reflectir sobre a bondade (ou não) do nosso embarque na jangada da Europa, eu apontava como razões para o aparente malogro de um tal projecto as seguintes razões fundamentais:
A primeira tem que ver com a própria natureza da União, edificada sem o farol de qualquer objectivo verdadeiramente congregador, antes na lógica directa da estratégia da Guerra Fria, conceito que, quanto se sabe, foi inventado pelas potências ditas ocidentais. Com o fim desse conceito, como até aí era formulado, por via da Implosão do Bloco de Leste, os fundamentos da União também se afundaram num charco de águas turvas, voltando depois à superfície travestidas de muitas outras coisas.
E se na sua origem tinham por teóricas e disfarçadas finalidades evitar a eclosão de mais guerras neste continente cuja história se narra por sucessivas, senão mesmo permanentes conflitos entre os seus membros fundadores, logo no primeiro sobressalto após a Queda do Muro se viu quão frágil era esta União na terrível, fratricida e genocida “Guerra dos Balcãs”.
No caso concreto de Portugal é hoje ainda mais claro o intuito dos políticos que se apressaram a tratar da nossa adesão: pôr o nosso país a salvo de qualquer tentação “totalitária inspirada no sistema que tinha Moscovo como “Sol” radioso, esquecendo-se, ou ignorando que já noutro momento crucial da nossa história nos debatêramos com o dilema de saber qual a nossa verdadeira vocação e interesses, se o continente europeu que para nós ficava lá tão longe, se o mar Atlântico aqui mesmo a banhar-nos o corpo quase por inteiro.
A História não comporta “se’s”, bem sabemos; mas a passagem por este momento crucial sempre dá para ver quando é que nós fomos realmente grandes, não vindo agora para o caso à custa de que desumanidades e narradas crueldades. A Inglaterra que nos seguiu os passos na epopeia marítima e imperial, relativamente à sua inserção numa comunidade de vocação essencialmente continental sempre se mostrou mais parcimoniosa, procurando, assim, salvaguardar as suas características próprias ditadas pela natureza e, consequentemente, a sua vocação mais virada para o mar, este que não é “Nostrum”, mas das potências económicas e militares.
E, no entanto, se formos a ver, a dita (re)construção europeia é um projecto, na sua essência e à partida, artificial; e a demonstração dessa fragilidade intrínseca aí está agora, exposta em toda a sua nudez na crise em que todos, se bem que uns mais que os outros, nos encontramos mergulhados, e em que os princípios fundadores tão sobejamente proclamados, com destaque para a solidariedade, vão sendo postos de lado perante a voz tonitruante dos ditos, e para a maior parte de nós misteriosos e obscenos, mercados.
E esta ausência de solidariedade, sabemo-lo bem, não dependerá da maldade ou bondade dos dirigentes e dos respectivos povos. Parece ser genética, o que, no caso, é o mesmo que dizer que tem raízes históricas, as quais, para não irmos mais lá para trás, têm que ver com a forma como os diferentes países que hoje constituem a Europa foram tocados, e “contaminados”,pela civilização muçulmana, pelo fenómeno do feudalismo e, mais modernamente, pelo movimento da Reforma e da Contra-Reforma. E, já agora, nada se perde se metermos aqui pelo meio também a linha separadora da implantação e desenvolvimento da Maçonaria, a que a revolução desencadeada por Lutero também não parece alheia.
O maior ou menor envolvimento com a civilização muçulmana, além de fazer dos países do Sul o veículo da retoma do contacto com a mãe de toda a nossa dita “civilização ocidental” e, através dessa via, do acesso aos mais avançados conhecimentos e técnicas ligadas às Matemáticas, Astronomia, Agricultura e Navegação, isto para já nem falar de domínios como a Filosofia, Literatura, Medicina e muitas outras mais, esse contacto, em alguns casos de vários séculos, explica, pelo menos numa boa parte, que tenham sido esses países que mais cedo partiram à descoberta de outros mundos e doutros interesses, e teve o condão, também por isso, de os subtrair aos maiores rigores do feudalismo que, na sua pureza, se foi instalando e progredindo na medida da perda do domínio do poderio de Roma, primeiro imperial e depois papal.
Mas a mais decisiva cisão entre as duas Europas – a do Sul e a do Norte e Central – talvez tivesse sido a que resultou, segundo Eduardo Lourenço e outros credenciados pensadores, do movimento da Reforma iniciada por Lutero nos começos do século XVI, o qual subtraiu à obediência papal os domínios da Europa Central e Setentrional. E a linha de separação que a partir daí se estabeleceu não foi só da ordem filosófico-religiosa, mas também, e por mor desta, de índole determinantemente cultural, com a conjugação da livre interpretação da Bíblia, pedra angular da doutrina de Lutero, com os progressos na técnica de impressão de textos a partir do impulso decisivo de Gutenberg, cerca de um século mais tarde, o que, dito de uma forma um tanto grosseira, dividiu o continente europeu numa Europa letrada – a do Norte e Centro – e numa Europa de analfabetos, cá mais para o Sul.
A Contra-Reforma, que não surgiu por acaso, teve o duplo, ou tripulo condão de manter uma parte do continente sob a obediência do Papa, de dar alento e até fomentar sucessivas, duradouras e devastadoras guerras sob as bandeiras de um e o mesmo Deus, e de por estas e outras vias evitar a “contaminação” dos povos do Sul, arraçados de mouros, de pretos e outras ainda mais exóticas estirpes, tudo, mesmo tudo, menos qualquer gota de sangue puro.
Por isso somos como somos, não como os demais, fracos de vontade, bem sabemos, enquanto dela não precisarmos. Gostamos de viver a vida, mesmo quando parecemos tristes. E se por vezes isso nos acontece, é porque temos sentimentos, os nossos, mais dados à saudade e outros modos idênticos de sentir, entre a dor da perda e a esperança nos dias que virão a seguir, bem diferentes das tragédias dos outros, tecidas com monstros e heróis épicos que, de dedo em riste, apontam para o destino glorioso e irrecusável de certos povos. A nós, também tentaram levar-nos por esses esotéricos caminhos, só que nós, mais pobres, mais ignorantes e desconfiados, pesem os quase 50 anos de fascismo envergonhado, não nos deixámos levar por Hitlers e Mussolinis.
Em resumo, quando nos pomos a pensar nesta Europa, afinal, com tão pouco de União e tão desigual, temos de ter em atenção que, na sua essência, a História assim o quis, a Sul ficou uma Europa Católica e a Norte uma Europa Protestante que bem mais cedo que a outra aprendeu a ler e a escrever. Que à pala deste diferendo o Sul se desfez com alguma crueldade e muita ingenuidade dos judeus verdadeiros, que eram, e ainda hoje são o pilar fundador e estruturante do sistema capitalista. E que esta linha divisória e determinante de diferentes percursos não foi traçada ao acaso e não é com tratados atrás de tratados donde os povos são sistematicamente arredados que esta realidade se vai alterar. Se calhar, o melhor ainda será começar a pensar numa outra solução.
Diamantino G. Silva*
Viseu, 14-01-2012
* Diamantino G. Silva é escritor, coronel reformado, capitão de Abril e comentador regular do Alpendre da Lua.