Páginas

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Ucrânia e Geórgia: os peões de brega entre a luta surda dos gigantes

***
Ucrânia e Geórgia: os peões de brega entre a luta surda dos gigantes

Vivemos num tempo em que a política concreta, a que se deseja e a que se concretiza, não corresponde às declarações públicas dos seus responsáveis.
Normalmente, o discurso público mascara a realidade, o que obriga a descodificar as respectivas mensagens, para conseguir perceber-se o significado dos objectivos ocultos. E isto, se é verdade ao nível da política interna de cada país, onde o grau de sofisticação da codificação do discurso político acompanha, em proporção directa, o nível de desenvolvimento sócio-cultural das sociedades a que se destina, também se verifica ao nível da política externa.
A ocorrência de dois acontecimentos, em dois países diferentes, e, aparentemente, não relacionados entre si, evidenciam de forma clara a existência de um fosso entre as palavras e os actos e entre a mistificação da realidade e as intenções concretas. As trocas de acusações mútuas entre a Geórgia e a Rússia e o acordo financeiro da União Europeia e a Ucrânia, para regularizar os pagamentos do gás fornecido pela Rússia, são emanações visíveis de uma mesma realidade geoestratégica, em que se defrontam os Estados Unidos e a Rússia.
O fim da Guerra-fria, que se prolongou por setenta anos, não dissipou, entre os dois países, as dúvidas e os medos. A Rússia – que não quer ficar arredada da nova partilha do poder mundial, onde entram também alguns dos países emergentes, com destaque para a China, que, com uma proverbial paciência e engenho, vai urdindo a teia complexa dos seus interesses – desconfia das intenções hegemónicas dos Estados Unidos. Por sua vez, os Estados Unidos não querem ter, como parceiro estratégico, um país, que, tendo sido o seu principal inimigo, ainda detém uma grande capacidade militar, alegadamente suficiente para sustentar um grau de exigências, que obstaculizariam os seus intentos de liderar o mundo.
Toda a estratégia dos Estados Unidos, depois do colapso da União Soviética, assentou na asfixia lenta do gigante euro-asiático, que quase ia sucumbindo, na década passada, a uma crise económica profunda, entretanto ultrapassada com a posterior subida dos preços internacionais dos combustíveis fósseis, o que lhe facultou um grande encaixe de divisas estrangeiras.
O próprio alargamento da União Europeia aos países de Leste, feito de maneira precipitada, tinha principalmente o secreto objectivo político de cercar e de isolar a Rússia, integrando os países que com ela fazem fronteira e subtraindo-os à influência remanescente da antiga União Soviética. A decisão de implantar um escudo nuclear nesses países é vista pelos russos como uma tentativa de lhe retirar, no campo militar, a margem estratégica e a potencial capacidade de iniciativa, o que fragilizaria a sua capacidade negocial, além de ficar mais exposta a um qualquer ataque nuclear dos países ocidentais. Para contrariar os desígnios dos americanos e dos europeus, a Rússia jogou no tabuleiro do Irão e da Ucrânia e foi muito firme e muito dura na resposta à provocação da Geórgia, estimulada pelos países ocidentais, que não desistem em desestabilizar-lhe as actuais fronteiras. Aos russos convém um Irão a desafiar os EUA, tal como a Geórgia está a desafiar a Rússia. O apoio dado ao Irão, através da cedência de tecnologia e equipamento nuclear, possibilita à Rússia obter receitas financeiras e importantes dividendos políticos.
Por sua vez, os países ocidentais apoiam em força a Ucrânia, onde a população da parte ocidental defende uma integração na União Europeia, em oposição à população da parte oriental, que pretende uma ligação preferencial à Rússia. Neste quadro, será sempre muito difícil ao actual governo de Kiev avançar decididamente, tal como desejaria, para a plena integração europeia, cenário este que agravaria, caso fosse concretizada, os equilíbrios internos do país e provocaria uma eventual retaliação da Rússia, a desencadear uma embaraçosa instabilidade no abastecimento de gás à Europa. A Rússia, no passado inverno, deixou a Ucrânia a tremer de frio, cortando-lhe o gás, em virtude das dívidas existentes, já vencidas, de fornecimentos anteriores, o que provocou também o corte dos abastecimentos à Europa. A Rússia fornece um quarto do gás natural consumido na Europa e 80 por cento desse abastecimento circula pela Ucrânia.
Para evitar a repetição deste cenário, no próximo inverno, a Europa e o Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento, segundo noticiou a imprensa na semana passada, vão emprestar à Ucrânia, a juro baixo, 570 milhões de euros, enquanto o FMI vai avançar já com uma tranche de 2,4 biliões de euros, o que constitui um dos maiores financiamentos dos países ocidentais a países amigos, em dificuldades. Custe o que custar, europeus e americanos querem uma Ucrânia a morder as canelas dos russos.
Também a Geórgia, que, em Agosto do ano passado, se precipitou, nas suas duas províncias, que reivindicavam a sua independência, numa desastrada incursão militar, desbaratada imediatamente pelo exército russo, voltou agora, segundo a imprensa da semana passada, a fazer provocações, lançando morteiros sobre a Ossétia do Sul, entretanto já independente, mas com uma ligação muito forte à Rússia, que já reagiu com muita firmeza a este incidente.
Quem leu distraidamente estas duas notícias, talvez não as relacionasse entre si, já que aparecem desenquadradas do contexto complexo que se vive naquelas regiões, nem tão pouco se apercebeu do jogo de influências das grandes potências, a determinar ocultamente os acontecimentos. A Europa aparece referida na notícia referente à Ucrânia, como uma pomba, que apenas pretende ajudar um país em dificuldades e garantir o seu próprio abastecimento de gás, proveniente da Rússia. Os EUA nem sequer são referidos, sendo este país, no entanto, o principal actor nesta guerra surda e suja. A opinião pública até irá pensar que se trata de um mero conflito local, uma birra entre vizinhos desavindos, o que prova a eficácia da mistificação do discurso político e o seu desfasamento com a realidade.
AC

Sem comentários: