Salvador Dali - Premonição da Guerra Civil , 1936 (100 x 99 cm - Philadelphia Museum of Art) Considerada a obra mais agressiva pintada em todos os tempos. |
Ultimatum
No
céu como um lustre
Está
toda a Terra acesa.
Ei-los
por ordem:
Camões,
Aquilinos,
Pascoaes,
Pessoa,
E
no fim de tudo,
A
minha cabeça ardendo
Por
cima de um vaso do século,
Ensanguentando
as ruas.
É
Portugal inteiro ardendo!
Chegaram
a este ponto
Com
a testa esplêndida do Inferno.
Chegaram
os canhões e as liras
Pelas
bocas das Tribunas;
Acomodaram-se
os fiéis
Ajoelhados
na República:
-
Cadáveres
Sobre
cadáveres,
Cantando
em ondas de veludo
A
Tribuna Romana,
Que
forraram de Hitler.
Está
toda a Europa presente
Nas
trincheiras das mesquitas.
E
hoje resplandece
Esta
viúva calva da Terra
Nas
catedrais de Hiroxima,
Que
rodam na mais terrível hipérbole
Pelos
séculos sem fundo;
E
as areias das encostas
Troam
ao longe,
Como
trovões em carne de espuma.
Tensos,
os habitantes da América,
Fizeram
nascer uma bomba em Lisboa.
Tremem
de gelo no peito dos jovens,
Amotinados
pelos exércitos da Europa.
Hoje
celebram-se as bodas de sangue
Num
podium!
E
Portugal
Treme
de repente
Nos
seios de Ilíada!
Descem
granadas pelas páginas do Saara, e
De
novo as ninfas do Tejo
São
degoladas em nossos dias.
E
num pesadelo mais negro
É
a pintura de Botto e d’ Almada
Que
ilumina todos os sons mesclados
Na
feiura do Século!
-
A eles todos! A eles!
Gritam
os desempregados do mundo
Com
plumas!
E
enchendo o samovar de gemidos humanos,
Sobem
para o Céu
Num
grito verdadeiro no dia do Ungido!
E
os tiros dos anjos ouvem-se blindados
Com
nuvens no rosto mais calmo de Buda!
-
Eh! Vocês! Eh !!!,
De
rostos amedrontados nos esqueletos caídos!
Isto
foi para o que vim em carne viva,
Para
que vos possa contar tudo sem esconder uma única prega!
E
viro a outra página do Livro
Amarrotado
à chuva.
É
o mais belo incêndio dos anos.
E
num comboio amordaçado,
Os
cabelos dos mortos
São
agora fios da China!
E
sob o manto dos risos, Portugal ergue-se ridículo
De
um batalhão de palmeiras!
A
isto!
A
isto!
Em
verso, não!
É
melhor cuidar dos vivos
Antes
que o seu coração inflame de sida!
E
na confusão dos aplausos,
A
minha língua atravessa um verdadeiro deserto!
Curvo-me
ante o peso terrível das blasfémias do século
Como
um Anjo caído nas mãos da República!
O
Universo inteiro sofre agora um tormento gelado
Que
lança os primeiros gemidos
Nos
olhos ardentes dos templos da India!
Escorro
degolado pelos canais de Veneza
Ardendo
no sangue da Europa
Numa
pálpebra caseira
E
o meu rosto desfigurado nos anjos,
Retém
o meu nome vazado
Num
dia de trabalho
Num
oceano incontável.
Confesso:
Eu sou o culpado!
Sou
Eu o mais maldito dos fiéis verdadeiros
Que
se feriu na Batalha dos Lázaros!
E
agora como um cão esganado
Não
sei a que vítima atirarei o meu próximo golpe.
Mas,
Séculos! Perdão!
Ajoelhar-
me-ei ao pé de Vós se for necessário!
Abandonarei
a escória dos Anos!
Eu
própria arrancarei ao vivo
As
drogas e as armas da pele da Europa
Como
um continente fedorento de lepra!
E
se for necessário,
Humilhar-me-ei
Diante
da avalanche dos Séculos!
Tomarei
todas as lágrimas
Num
oceano blindado,
Para
que nasçam Homens
Mais
livres
Que
o próprio século!
E
no corpo de Gólgota
Cravarei
uma faca no rosto de Líli
Nos
seus lábios ofendidos pelas feridas de Mussolini.
E
dos túmulos do mundo,
Levantarei
os oceanos escondidos
No
rugido das Fábricas!
Um
só não ficará deitado!
Trarei
às costas todo o ouro Diógenes
Das
entranhas da Grécia,
Por
um cortejo ardendo sonoro.
E
como um harpejo apaixonado
Num
coração de carnes fogosas,
Entregar-me-ei
Como
uma mulher de incêndios nos lábios,
A
todas as montanhas do Tibete às Áfricas!
Glória!
Glória!
Glória
aos céus nas alturas
Pelo
que trouxe pelo vaso dos séculos!
Sou
o mais luminoso ponto que gela em Nápoles!
E
a minha amante perfumada
É
agora uma Rosa africana
Que
viaja aos pés dos humildes!
E
todos os corações fungosos
Numa
capital da europa
Correm
atrás dela através de cada violino
Por
onde passa em azul…
Olhai!,
como ao pé de cada árvore
Crescem
os séculos! E de todos os portos
Saem
navios, braço-dado pelos continentes fora!
Todos!,
para a Festa que eu proclamo!
Gente!,
esse momento há-de vir
Com
as mais poderosas canções sonoras
No
leque da História!
E
Eu, o mais humilde do seus filhos,
Tocarei
os sinos
Ao
pé da minha amante…
maria
azenha
1989, Hora
Imediata (Hora Extrema), Átrio - pág. 8 a 12,
Nota: Tal como Salvador Dali se antecipou, com a sua
genial pintura, à Guerra Civil de Espanha, também Maria Azenha, neste poema,
deixou uma marca indelével e premonitória do inferno que Portugal está a viver
atualmente, numa orgia dantesca da “celebração das bodas de sangue”, ao mesmo
tempo que nos descreve a decadência de um mundo inquieto, que deixa “descer” as
granadas pelas “páginas do Saraa”. É o retrato não só do fim de um século, um
século de descomunais horrores, mas também do fim do paradigma nascido na
Acrópole e no mar Egeu, e que já não ilumina a humanidade.
No entanto, a poeta deixa aberta a nesga de uma
porta, uma pequena coluna de luz para perscrutar o futuro e para se poder ouvir
na claridade das manhãs o som dos sinos e as “poderosas canções sonoras”,
abrindo-se assim, mais uma vez, o “leque da História”.
Estamos em presença de um poema, que não pode
ser esquecido!...
AC
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