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sábado, 18 de fevereiro de 2012

Opinião: A trapeira do Job - por António Barreiros, advogado

Mário Soares a assinar a adesão de Portugal à CEE
Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente. Mas houve um tempo em que as pessoas se lembravam, ainda, da época da infância, da primeira caneta de tinta-permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro televisor, do primeiro rádio, de quando tinham ido ao estrangeiro. Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos, e se tingia a roupa usada, tempos em que se punham meias-solas com protectores. Tempos em que ao mudar-se de sala se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à sua Joana". E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana pode arrasar. Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas. Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status como a língua nos cães para a sua raça. Foram anos em que o Campo se tornou num imenso ressort de Turismo de Habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave. Houve quem pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro. O país que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e às vezes nem obrigado. O país que produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio. Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente. Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e mais uma trinitária pomba. Às tantas, os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos. A chegada das lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexibeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir. Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro, e sempre pela reforma agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo, e já leu o New Yorker? A agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende. Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto-autorizado. Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar dinheiro, vendermos-nos ao dinheiro, enforcarmos-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra. Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental e, nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas, que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E, contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós. Estamos nisto. Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa. ( Ainda não foi desta! ) Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós.
António Barreiros, advogado
Amabilidade do João Fráguas, que enviou este texto.
***&***
Este é o outro lado da crise. Ou melhor, o seu dramático complemento, inserido, ao nível das mentalidades e dos comportamentos, num contexto sociológico e psicológico complexo. Durante trinta anos, a sociedade portuguesa viveu a sublimar recalcamentos antigos, que a pobreza e o subdesenvolvimento engendraram. Tudo parecia demasiadamente fácil. E foi! Só que não houve o bom senso de perceber que ninguém dá nada de graça a ninguém. Tudo se paga, excepto o ar que se respira e o sol que nos aquece. Ainda me lembro, quando da adesão formal à então CEE, da euforia da corrida à compra das chapas das matrículas para os automóveis, com as doze estrelinhas amarelas em círculo, que só eram exigidas para os veículos novos, comportamento anedótico a marcar a nossa proverbial pacovice saloia.  E de um momento para outro acordámos, incrédulos, com um enorme pesadelo. À depressão coletiva, que a medicina caseira não conseguiu curar, poderá seguir-se a loucura esquizofrénica, pois o tratamento com doses cavalares, administradas pela troika, está a produzir efeitos contrários aos anunciados. Oxalá que a loucura não resvale para o suicídio.

5 comentários:

olimpio pinto disse...

Subscrevo, ponto por ponto.

"O homem vive a princípio uma vida exterior, e, mais tarde, uma interior; a noção de efeito precede, na evolução da mente, a noção de causa interior desse mesmo efeito.
A capacidade de compreensão dos grandes grupos humanos é extremamente limitada; em contrapartida, a sua falta de memória é enorme."

Fernando Pessoa

A Energia dos Anjos disse...

Boa noite Alexandre de Castro, adorei este texto de opinião do António Barreiros, uma retropectiva de alguns anos, que muitos teimam em não lembrar...e por fim a parte final de salientar mesmo "Estamos nisto. Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa. ( Ainda não foi desta! ) Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós."...onde está a Islandia que tanto recusou as medidas impostas pela Troika e que ninguem fala? ...Um país que eu admiro pela sua coragem em dar a volta á situação.....Falamos de uma palavra "crise" mas muitos nem sonham que ela poderá mesmo ser a III Guerra Mundial, embora de uma forma tão silenciosa mas que aos pouco está a matar tudo aquilo que se conheceu até aos anos de hoje e cujos economistas neste momento, nem sabem como explicar e que mais teorias inventar para a combater e que apenas está a levar consigo todos os dias milhares e milhares de pessoas (familias), pois muitos já nem sabem como arranjar comida para colocar em cima da mesa, pelo menos para os filhos, isto é de facto uma dura realidade para muitos.Obrigado Alexandre Castro por esta partilha....e pronto...já desabafei....apenas um cadito!

A Energia dos Anjos disse...

Boa noite Alexandre de Castro, adorei este texto de opinião do António Barreiros, uma retropectiva de alguns anos, que muitos teimam em não lembrar...e por fim a parte final de salientar mesmo "Estamos nisto. Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa. ( Ainda não foi desta! ) Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós."...onde está a Islandia que tanto recusou as medidas impostas pela Troika e que ninguem fala? ...Um país que eu admiro pela sua coragem em dar a volta á situação.....Falamos de uma palavra "crise" mas muitos nem sonham que ela poderá mesmo ser a III Guerra Mundial, embora de uma forma tão silenciosa mas que aos pouco está a matar tudo aquilo que se conheceu até aos anos de hoje e cujos economistas neste momento, nem sabem como explicar e que mais teorias inventar para a combater e que apenas está a levar consigo todos os dias milhares e milhares de pessoas (familias), pois muitos já nem sabem como arranjar comida para colocar em cima da mesa, pelo menos para os filhos, isto é de facto uma dura realidade para muitos.Obrigado Alexandre Castro por esta partilha....e pronto...já desabafei....apenas um cadito!

Sónia M. disse...

Os chamados efeitos secundários dos alucinogênios, que povos inteiros ingeriram de livre vontade.
Resta saber Alexandre, se não terá razão e o "desmame" desta droga não levará muitos ao suicido.

afonso disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.