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Mário Jorge Neves _ Médico e dirigente sindical |
Há um
fantasma que continua a esvoaçar no Ministério da Saúde
Ao longo dos anos as situações contraditórias a
nível das políticas governamentais de saúde têm-se sucedido, assumindo muitas
vezes formas inesperadas e até surpreendentes.
As organizações dos profissionais de saúde,
apesar das adversidades dos processos políticos e das medidas altamente lesivas
dos interesses laborais, têm conseguido, nos aspectos essenciais, enfrentar com
determinação essas políticas e esses círculos de interesses que acabam sempre
por se adaptar às novas situações e aos novos actores do Poder político.
Depois de 4 anos de obsessão privatizadora e
neoliberal por parte do anterior governo, onde as políticas sociais foram
erigidas como inimigos a abater e em que o Estado Social foi duramente
golpeado, esperava-se que o novo ciclo político e governativo abrisse uma
janela de esperança e se apresentasse, de forma decidida, para romper com as
anteriores políticas e com os anteriores actores, designadamente na área da
Saúde.
A escolha do actual titular ministerial desta
área mereceu da minha parte um comentário público num jornal diário,
considerando-a uma opção infeliz, tanto mais que o actual governo se apresentou
como de esquerda e em ruptura com o passado governativo imediatamente anterior.
Embora tenha sublinhado que a minha opinião era
de carácter exclusivamente pessoal e de a própria notícia ter até salvaguardado
esse aspecto, surge sempre alguém a considerar que sendo eu um dirigente
sindical é sempre difícil evitar que as declarações pessoais não possam
comprometer a organização sindical de que se é dirigente e que é sempre difícil
separar as opiniões pessoais das de dirigente.
É óbvio que um cidadão por ser dirigente
sindical não passa a estar impedido de emitir as suas opiniões pessoais,
relegado para uma cidadania de 2ª classe e a não poder exercer o livre
pensamento e crítica.
Ao contrário daquilo que durante vários anos foi
apregoado à falta de outros argumentos credíveis, a FNAM sempre foi uma
organização plural com diversas sensibilidades e uma firme adversária do
pensamento único. Independentemente das posições que os órgãos dirigentes da
FNAM tomarem, nunca aceitarei estar inibido em expressar livremente as minhas
opiniões.
É neste contexto que não posso deixar de abordar
o recente discurso do Secretário de Estado Adjunto da Saúde, Dr. Fernando
Araújo, efectuado em 16/12/2015, na apresentação pública de 3 coordenadores
para a reforma do SNS.
O discurso, não sendo extenso, contem diversas
abordagens habituais em quase todos os conteúdos programáticos de grande parte
dos governos, possui ideias genéricas sobre problemas há muito identificados e
até quantificados, mas existe um parágrafo que pela sua enorme gravidade
político-ideológica merece a elaboração deste artigo de opinião.
Ora, o referido parágrafo, referindo uma das
propostas ministeriais, diz o seguinte: “ Um Sistema Integrado de Gestão do
Acesso, que facilite o acesso e a liberdade de escolha dos utentes no Serviço
Nacional de Saúde, nomeadamente no que diz respeito a áreas onde a espera ainda
é significativa, criando e estimulando um mercado interno no Serviço Nacional
de Saúde;
“ Lendo isto, a surpresa é total, desde logo por
ter sido proferido pelo referido secretário de estado que eu não julgava
rendido a este tipo de ideologia e, por outro lado, porque há largos anos que
não havia uma equipa ministerial da saúde que se apresentasse, sem
subterfúgios, numa lógica de recuperação político-ideológica da tralha dos
conceitos neoliberais mais fundamentalistas e radicais que foram desenvolvidos
durante a década de 1980 por Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha, para
desencadear a destruição do respectivo Serviço Nacional de Saúde (NHS).
Em 1989, o governo conservador de Margaret
Thatcher apresentou um documento orientador da reforma do sistema de saúde com
o título “Trabalhando para os doentes”. Este documento tornou-se mais conhecido
pela designação de “White Paper”.
Nas suas considerações gerais, era afirmado que
ele visava: o “fortalecimento do NHS”; “colocar o doente acima de qualquer
interesse”; “o governo mantém e não mudará os princípios sobre os quais o NHS
foi erigido”; o “NHS continuará aberto a todos e financiado pelas contribuições
fiscais”; e que “cada vez mais gente se dá conta de que nova injecção de mais
dinheiro não é, por si só, uma resposta”.
Como objectivos gerais foram colocados os
seguintes: “oferecer aos doentes, independentemente do seu lugar de residência,
melhores cuidados de saúde e maior possibilidade de escolha dos serviços
disponíveis”; “gerar maior satisfação e incentivos para os profissionais do NHS
que demonstrem responder satisfatoriamente às necessidades e preferências dos
doentes a seu cargo”.
Para permitir que os hospitais que prestassem
melhores serviços aos seus utentes tivessem acesso aos investimentos
financeiros de que necessitavam, o dinheiro para tratarem os doentes poderia
“cruzar” as então fronteiras administrativas entre os distritos.
Nesse sentido, todos os hospitais do NHS seriam
livres de oferecer os seus serviços tanto ao sector público como ao privado.
Deste modo, o dinheiro acederia, diziam eles, com maior fluidez onde fosse
prestada a actividade assistencial e onde ela se realizasse melhor (estas
disposições definem o principio do “dinheiro que segue o doente”).
Entretanto, foram criados os chamados orçamentos
para os “group practices”, justificados como uma forma de ajudar os médicos
clínicos gerais a melhorarem a prestação de serviços aos seus utentes.
Os médicos clínicos gerais poderiam solicitar os
seus orçamentos ao NHS, que seriam por si administrados para comprarem
directamente aos hospitais que entendessem um pacote definido de serviços
hospitalares para os seus utentes. O conceito nuclear deste “White Paper” foi a
separação das funções de prestador e financiador, nomeadamente através da
separação dos hospitais que prestam os serviços e das autoridades de saúde e os
clínicos gerais que lhes compravam esses serviços.
Em torno desta medida, foi também argumentado
que se os papéis estivessem separados, as agências financiadoras teriam a
possibilidade de efectuar um exame mais cuidadoso das prioridades e
necessidades dos doentes e das populações, e uma avaliação mais cuidadosa e
independente. Libertas das pressões imediatas de gerir hospitais e das pressões
políticas de interesses de grupos profissionais de saúde, poderiam ser
efectuadas avaliações mais críticas e tomadas decisões mais racionais.
Deste modo, e ainda segundo os argumentos
oficiais, as agências fornecedoras poderiam ficar aptas para competirem umas
com as outras pelos negócios das agências financiadoras/compradoras. No
essencial, a separação entre compra e prestação era parte do modelo de reforma
assente no “mercado interno” necessário para introduzir a atribuição de
recursos baseada na competição entre prestadores e formalizado através de
contratos, em que essa atribuição estaria ligada, cada vez mais, ao volume de
actividade e aos custos e menos aos gastos históricos .
O White Paper integrou todas as concepções
politicas e ideológicas da chamada “competição gerida” que é outro dos chavões
neoliberais da política privatizadora na saúde, num processo de importação do
modelo dos EUA. Aliás, é por demais elucidativo que o ideólogo da competição
gerida, o americano Alain Enthoven, intimamente ligado aos interesses das HMO´s,
tenha sido o responsável directo pela elaboração e implementação do White
Paper, acompanhado por uma numerosa equipa de largas dezenas colaboradores do
seu país.
As questões que acabo de referir não são meras
análises especulativas, mas trata-se da enumeração de factos concretos da
conhecida e dramática situação de destruição do NHS britânico ao longo das
últimas décadas.
Como vimos, todos os argumentos publicitários
para procurar dissimular os verdadeiros objectivos destruidores do NHS por
Thatcher e evitar uma imediata contestação da respectiva opinião pública,
começavam logo por afirmar de forma altissonante que o seu governo iria manter
e não mudaria os princípios sobre os quais o NHS tinha sido erigido e passados
poucos anos a “demolição” furiosa desse mesmo NHS tinha sido desencadeada,
atingindo os seus aspectos mais basilares.
Também por cá, os inimigos do Serviço Nacional
de Saúde vão soletrando abundantemente a sigla SNS para melhor dissimular o
seus objectivos inconfessáveis de o esvaziarem e finalmente decretarem o seu
óbito.
O que é chocante é que um governo que se tornou
possível por um largo entendimento entre as várias componentes da esquerda
portuguesa venha recuperar ao fim de três décadas um conjunto de conceitos e um
modelo que foram responsáveis por uma acção ideológica e de múltiplas medidas
políticas que conduziram ao desastre aquele que foi durante largo tempo
considerado internacionalmente como o melhor serviço público de saúde e dotado
dos melhores indicadores.
Vir falar da livre escolha dos doentes em
abstracto e da criação do famigerado “mercado interno” é desde logo uma
garantia de que o SNS continuará a ser fustigado por políticas adversas e que
as perspectivas que começam a vislumbrar-se só podem causar a mais viva
inquietação aqueles que têm dedicado a sua intervenção cívica na defesa
dinâmica deste insubstituível direito constitucional.
É que a defesa dinâmica do SNS não é defender
tudo o que está e como está, mas introduzir mecanismos concretos e articulados
para redinamizar a sua função social e humanista, encontrando respostas sempre
novas aos contínuos problemas novos que o vão desafiando na sua missão
civilizacional e de contributo para a coesão social.
Não será difícil adivinhar que o “fantasma” da
Thatcher que alguns governos anteriores, a começar pelo último, tanto
idolatraram conduzirá a muitos resultados possíveis, mas há um que seguramente
não visa assegurar: a defesa e a revitalização do SNS como instrumento do
direito geral, universal e tendencialmente gratuito à Saúde.
Resta saber como reagirão os partidos e as
organizações sociais à esquerda do actual governo, sendo certo que com a
existência já deste cartão de visita numa das áreas sociais mais emblemáticas
da nossa vida quotidiana não lhes será fácil coabitarem com a negação das suas
propostas na área da Saúde.
O “fantasma” neoliberal continua a assombrar os
corredores da Avª João Crisóstomo ?
Mário Jorge Neves
Médico e dirigente sindical