Fernando Pessoa, por Almada Negreiros |
Meu caro Poeta.
Escrevo-lhe a desoras da Delicadeza. Há meses
que o Luís de Montalvor me fez chegar aos olhos o seu Livro. Embora o lesse sem
tardança, tenho demorado o agradecimento para além dos limites que se usam. A
licença poética não admite tanto. Eu tenho abusado do direito concedido aos
camaradas de responder longe de propósito. Começo a minha carta por lhe pedir
as desculpas a que este adiamento obriga.
Não sei que lhe diga do seu livro, que seja bem
um ajuste entre a minha sensibilidade e a minha inteligência. Ele é deveras a
obra de um Poeta, mas não ainda de um Poeta que se encontrasse, se é que um
Poeta não é, fundamentalmente, alguém que nunca se encontra. Há imperfeições e
inacabamentos nos seus versos. Vêem-se ainda entre as flores as marcas das suas
passadas. Não se deveriam ver. Do poeta deve ser o ter passado sem outro
vestígio que a presença das rosas. Para quê os ramos quebrados, ainda, e
partido o caule das violetas?
Eu não lhe devia dizer isto, talvez, sem
prefaciar que sou o mais severo dos críticos que tem havido. Exijo a todos mais
do que eles podem dar. Para que lhes havia eu de exigir o que cabe na
competência das suas forças? O poeta é o que sempre excede o que pode fazer.
O seu livro é dos mais belos que recentemente
tenho lido. Digo-lhe isto para que, não me conhecendo, me não julgue posto
sobre a severidade sem atenção às belezas do seu livro. Há em si o com que os
grandes poetas se fazem. De vez em quando a mão do escultor faz falar as curvas
nuas da sua Matéria. E então é o seu poema sobre o “Cais”, e o seu “Outono”, e
este e aquele verso, caído dos deuses como o que é azul no céu nos intervalos
da tormenta. Exija de si o que sabe que não poderá fazer. Não é outro o caminho
da Beleza.
Eu detalho.
Tenho vivido tantas filosofias e tantas poéticas
que me sinto já velho, e isto faz com que me dê o direito de o aconselhar, como
Keats a Shelley, que esteja de vez em quando com as asas fechadas. Há um grande
prazer estético às vezes em deixar passar sem exprimir uma emoção cuja passagem
nos exige palavras. Dos nossos jardins interiores só devemos colher as rosas
mais afastadas e as melhores horas e fixar só aquelas ocasiões do crepúsculo
quando dói demasiado sentirmo-nos. Nenhum poeta tem o direito de fazer versos
porque sinta a necessidade de os fazer. Há só a fazer aqueles versos cuja
inspiração é perfumada de imortalidade.
Escrevo e paro. Pergunto a mim-próprio se poderá
julgar tudo isto, porque não é transbordante de elogios, uma crítica adversa.
Não o conheço e não sei. Mas repare que só a quem muito aprecio eu escrevo
destas coisas. Decerto me faça justiça de crer que a quem não tem nenhum valor
eu digo imediatamente que tem muito. Só vale a pena notar os erros dos que são
na verdade Poetas, daqueles em quem os erros são erros. Para que notar os erros
daqueles que não têm em si senão o jeito de errar?
Com tudo isto, que parece hesitante no elogio,
repito-lhe que o seu livro é dos mais belos que ultimamente tenho lido. A sua
imaginação, doentia e delicada, é uma princesa que olha das janelas o luxo longínquo
dos tanques. Vejo que sente os repuxos. Eles são com efeito as melhores horas
da água, e decerto que os mais belos são aqueles, em jardins ainda do século
dezoito (e que nós nunca poderemos ver) .
A sua sensibilidade dói-me. Por certo que
outrora nos encontramos e entre sombras de alamedas dissemos um ao outro em
segredo o nosso comum horror à Realidade. Lembra-se? Tinham-nos tirado os
brinquedos, porque nós teimávamos que os soldados de chumbo e os barcos de
latão tinham uma realidade mais preciosa e esplêndida que os soldados-gente e
os barcos reais. Nós andamos longas horas pela quinta. Como nos tinham tirado
as coisas onde púnhamos os nossos sonhos, pusemo-nos a falar delas para as
ficarmos tendo outra vez. E assim tornaram a nós, em sua plena e esplêndida
realidade — que paga de seda para os nossos sacrifícios! — os soldados de
chumbo e os barcos de latão; e através das nossas almas continuaram sendo, para
que nós brincássemos com eles. A hora (não se recorda?) essa era demasiado
certa e humana. As flores tinham a sua cor e o seu perfume de soslaio para a
nossa atenção. O espaço todo estava levemente inclinado, como se Deus, por uma
astúcia de brincadeira, o tivesse levantado do lado das almas; e nós sofríamos
a instabilidade do jogo divino como crianças que apreciam as partidas que lhes
fazem, porque são mostras de afeição. Foram belas essas horas que vivemos
juntos. Nunca tornaremos a ter essas horas, nem esse jardim, nem os nossos
soldados e os nossos barcos. Ficou tudo embrulhado no papel da seda da nossa
recordação de tudo aquilo. Os soldados, pobres deles, furam quase o papel com
as espingardas eternamente ao ombro. As proas dos barcos estão sempre para
romper o invólucro. E sem dúvida que todo o sentido do nosso exílio é este — o
terem-nos embrulhado os brinquedos de antes da Vida, terem-nos posto na
prateleira que está exatamente fora do nosso gesto e do nosso jeito. Haverá uma
justiça para as crianças que nós somos? Ser-nos-ão restituídos por mãos que
cheguem aonde não chegamos os nossos companheiros de sonho, os soldados e os
barcos? Sim, e mesmo nós próprios, porque nós não éramos isto que somos...
Éramos duma artificialidade mais divina...
Perdoe-me que lhe escreva assim... A Vida,
afinal, vale a pena que se lhe diga isto. Deus escuta-me talvez, mas de si
ouve, como todos que escutam. A tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que
a escrevesse...
Abraça-o
Fernando
Pessoa
...................................................................................................
Fonte: PESSOA, Fernando. In “Correspondência
(1905-1922)”, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p.150. / in "Páginas de
Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa". Lisboa: Ática, 1966. p.
135. /e TRIBUNA da Imprensa, Rio de Janeiro, 12-13 de Fevereiro de 1955, com o
título “Carta inédita de Fernando Pessoa a Ronald de Carvalho”. [mantida a
grafia original]
"O poeta é o que sempre excede o que pode fazer".
***«»***
Esta carta de Fernando Pessoa, assume-se como um
texto crítico e matricial, em que o grande poeta procura balizar as fronteiras
incomensuráveis da Poesia, desenvolvendo conceitos e fixando o cânone do
modernismo literário. Respiguei alguma frases, que me pareceram mais
significativas e emblemáticas:
"Um Poeta ... é, fundamentalmente, alguém
que nunca se encontra".
"O poeta é o que sempre excede o que pode fazer".
"Dos nossos jardins interiores só devemos
colher as rosas mais afastadas e as melhores horas e fixar só aquelas ocasiões
do crepúsculo quando dói demasiado sentirmo-nos. Nenhum poeta tem o direito de
fazer versos porque sinta a necessidade de os fazer. Há só a fazer aqueles
versos cuja inspiração é perfumada de imortalidade".
"Pergunto a mim-próprio se poderá
julgar tudo isto, porque não é transbordante de elogios, uma crítica adversa.
Não o conheço e não sei. Mas repare que só a quem muito aprecio eu escrevo
destas coisas. Decerto me faça justiça de crer que a quem não tem nenhum valor
eu digo imediatamente que tem muito. Só vale a pena notar os erros dos que são
na verdade Poetas, daqueles em quem os erros são erros. Para que notar os erros
daqueles que não têm em si senão o jeito de errar?"
"Escrevo e divago, e tudo isto parece-me
que foi uma realidade. Tenho a sensibilidade tão à flor da imaginação que quase
choro com isto, e sou outra vez a criança feliz que nunca fui, e as alamedas e
os brinquedos, e apenas, no fim de tudo, a supérflua realidade da Vida..."
AC
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