Putine passou de bestial a besta em menos de 24
horas. De grande estrela organizadora dos Jogos Olímpicos de Sotchi, autêntica
medalha de ouro da modalidade de contra-terrorismo, capa de variadíssimas
publicações ocidentais durante quinze dias, Putine passou a ser o urso que
ameaça devorar o mundo. Há, claro, em tudo isto (como diria Mark Twain a
propósito das notícias sobre a sua morte), algum exagero e também alguma má-fé
e muita ignorância.
As razões geopolíticas do afrontamento na “terra
da fronteira” (significado literal de Ucrânia) são conhecidas de todos os que
se interessam (mesmo pouco que seja) pela geopolítica. Mario Draghi confessou,
a propósito, há uns dias, que a geopolítica era algo que estava para lá do
alcance de “um pobre banqueiro central”… Mas esqueceu-se de referir (ou não
sabia) que nenhum banqueiro central (pobre ou não…) está para além do alcance
da geopolítica.
George Friedman, para só citar um nome conhecido
dos leitores do “IE”, há anos que vinha a antecipar, em público, os actuais acontecimentos
da Ucrânia (e outros da Europa e da Rússia) e, ao longo de 2013, lançou vários
alertas sobre o problema. Portanto, esta crise, como todas as crises, era
antecipável e a prova é que houve quem a antecipasse, como o nosso referido
amigo George Friedman.
Não há, portanto, aqui nenhuma surpresa
(Friedman explicou há um ano como a reacção de Putine só poderia ser a que
agora… foi!) e se algum dirigente político ocidental se diz surpreendido,
então, só está a comprovar que não tem competência para o cargo que ocupa. Mas
isso também já se sabia…
Que a Crimeia queira ser russa também não é um
facto que possa surpreender, tendo em conta a história dos últimos séculos e a conjuntura
estratégica das últimas décadas. Nem é, de resto, caso raro e muito menos
único. Assim, de repente, para não falar da defunta Checoslováquia, nem da
falecida Jugoslávia e outros Kosovos, bastará lembrar a velha guerra da Irlanda
e, mais recente, a Escócia a querer separar-se do Reino Unido, a Flandres que
quer sair da Bélgica, a Valónia que admite integrar-se na França, a Lombardia que
não quer ser italiana e, mais perto de nós, o País Basco e a Catalunha que
gritam não ser Espanha e pretendem viver a sua própria vida. E a Alemanha
deverá olhar também um pouco para aquilo que é… O estado politicamente mais
arcaico e frágil da Europa, permanentemente ameaçado de uma implosão que só a ocupação
militar americana mantinha fora da agenda e que agora só o sucesso económico
disfarça, a Alemanha ter em qualquer altura a sua Crimeia na…Baviera.
A Crimeia não é, portanto surpresa alguma, nem
sequer uma história rara. Que as chancelarias da União Europeia sucumbam a um
fatal cocktail de arrogância e ignorância, polvilhado de preguiça, é outra
história, que tão pouco é rara mas, sim, muito comum. Que, tendo sucumbido a
esse cocktail fatal, as chancelarias europeias sejam surpreendidas, pelo normal
evoluir das dinâmicas que desencadeiam, tão pouco tem nada de surpreendente.
Que estejam agora a ser assediadas pelos banqueiros que, levianamente e com muito
desprezo pela geopolítica, se “expuseram” na Rússia mas sobretudo na Ucrânia
(onde a exposição ascende a dezenas de milhares de milhões…) também não
surpreende. Aliás, seria o contrário que surpreenderia. Tal como surpreenderia
que a União Europeia não mobilize já umas dezenas de milhares de milhões (do
dinheiro dos contribuintes, claro) para correr
“ajudar” (a fundo perdido) a Ucrânia a pagar aos bancos europeus, para que
estes não percam os seus fundos. O dinheiro, aliás, nem avistará terras da Ucrânia,
passará directamente dos bolsos dos contribuintes para os cofres dos bancos.
Claro, tudo isto precisa de um discurso justificativo e até apologético. A
guerra económica dos bancos pela recuperação dos seus fundos precisa de uma boa
guerra de informação… E ela aí está que já transformou em ouro devorador a medalha
olímpica do contra-terrorismo de Sotchi. Até os editoriais de um “Economist”, outrora
tão lúcido, cheiram a propaganda barata…
A questão estratégica, porém, é outra. A Rússia
é o jovem Estado que sucedeu à União Soviética (embora tenha perdido territórios
e populações). Como jovem Estado está a iniciar o seu percurso e tem escolhas
estratégicas a fazer. Escolhas que ditarão o seu futuro imediato e a longo
prazo. Por exemplo, dizer que a Rússia deve escolher a democracia à ocidental é
uma frase feita e totalmente
vazia. Oca. A Rússia, para escolher e construir
a democracia à ocidental, precisa de ter um horizonte de integração no mundo euro-atlântico.
De sentir e ver que essa integração não só é possível como é a melhor aposta em
termos de desenvolvimento e segurança do jovem Estado russo. Ora, a “crise” da
Ucrânia constitui-se em trauma para a Rússia que percepciona este conflito como
a vontade da Alemanha, enquadrada por outros europeus e apoiada por Washington,
de desestabilizar as fronteiras russas, instalar-se aí e obter o controlo do
Mar Negro, barrando a Moscovo a sua única via de acesso ao Mediterrâneo. Bem ou
mal, a Rússia percepciona a Ucrânia como um Estado-tampão essencial à sua
defesa. Isso é um facto. Um facto real e estratégico que, sendo tal, não pode
ser ignorado, como o foi pelas chancelarias europeias. Moscovo considera que,
dada a sua geografia e a sua história, a transformação
da Ucrânia num Estado sob influência de Berlim
(com ou sem apoio de Washington) é uma gravíssima ameaça à sua segurança
nacional e, como tal, não pode ser tolerável e, muito menos, tolerado. A
reacção de Putine só podia, portanto, ter a natureza que teve…
A sua recentíssima declaração de que pretende
uma “solução diplomática”, mais do que apaziguadora pode ser muito preocupante
e tem várias leituras possíveis mas concordantes e mesmo complementares.
Primeiro, Putine sente que já está montado um
sistema suficiente de forças na Crimeia e que, resolvido esse problema de
terreno, é agora tempo de começar a “conversar”;
Segundo, Putine não acredita em “soluções
diplomáticas” mas as forças no terreno, tanto na Crimeia como em todo o leste
da Ucrânia, são já suficientes para aguentar embates com as milícias e as tropas
deste governo anti-russo de Kiev;
Terceiro, não havendo soluções diplomáticas (e, obviamente,
quanto menos elas forem possíveis mais ele chamará por elas…), Putine aceita
uma “guerra prolongada” na Ucrânia (à imagem da ex-Jugoslávia), em que não
empenhará tropas mas municiará abundantemente as milícias pró-russas, pelo
menos enquanto não houver intervenções
estrangeiras;
Quarto, uma tal guerra civil na Ucrânia, uma
estratégia de caos, desestabilizará não só a Ucrânia mas toda a região, será um
imenso sarilho para a União Europeia, prejudicará gravemente os interesses
americanos no Irão, Síria, Iraque, Afeganistão e outros, tornará o Mediterrâneo
oriental uma autêntica zona de guerra, será uma bela vacina para outros Estados
ex-soviéticos que apresentem veleidades anti russas e, last but not least, isto
afastará, por décadas, Moscovo do mundo euro-atlântico colocando-o numa posição
de radical desconfiança estratégica de todo o Ocidente e, particularmente, de
Berlim;
Quinto, esta “estratégia caos” choca de frente
com os interesses europeus de um próspero mercado de 45 milhões de consumidores
ucranianos mas não belisca o interesse russo de ter na Ucrânia um Estado-tampão,
que pode perfeitamente ser o campo de ruínas resultante de uma arrasadora
guerra civil.
A Bruxelas, na Ucrânia, já está visto que lhe
saiu o tiro pela culatra… Os estragos que isso provocará é o que ainda iremos
ver. Como tudo isto pode ser visto, enquadrado e explorado no quadro da
estratégia nacional portuguesa é algo a que só quem souber o que essa
estratégia nacional poderá dar alguma resposta…
Inteligência Económica
10/03/2014
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