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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Mãe



Mãe
 
Naquele último momento
tentaste confessar-me um segredo,
um segredo qualquer
guardado uma vida inteira
e que eu não entendi
porque a tua fala desesperada
ficou suspensa
nos lábios imobilizados.
Só os teus olhos alarmados
mexiam de ânsia e de medo.
Mas não sei se seria realmente um segredo
o que me querias dizer
ou apenas um último lamento
ou até, quem sabe,
a recordação daquelas tardes de Junho,
quando eu ainda era criança,
em que te deitavas comigo
(enrolados num cobertor de papa)
com medo das trovoadas.
- É Deus que está a ralhar – dizias-me,
enquanto me apertavas com carinho,
para me proteger.
Talvez, também, quando, um dia, me perdi de ti, 
por um breve instante,
e perguntei, depois de te reencontrar,
se eras realmente a mesma mãe,
se não eras outra, igual à primeira,
de um mundo que, por momentos,
eu imaginei duplicado, em coisas e pessoas,
e que, agora, sei que esse mundo não existe,
porque tu já morreste
e eu não vejo nem tenho outra mãe.
 
                                                                Alexandre de Castro
 
Lisboa, Maio de 2007      



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Perfazem-se, hoje, vinte e sete anos, sobre o falecimento de minha mãe, que ocorreu no Hospital dos Capuchos.  
O poema reflecte os últimos momentos da sua vida.                                                                                                                                                        

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