PORTUGAL, A EUROPA E A CRISE.
A crise nacional
Portugal enfrenta hoje uma das mais graves crises da sua história, simultaneamente económica, bancária e da dívida soberana. Os primeiros sinais revelaram-se no ano de 2003, e de forma mais crítica e continuada a partir de 2007. Na sua génese esteve a acumulação de desequilíbrios macroeconómicos e de debilidades estruturais, que as crises europeia e global tornaram visíveis em toda a sua extensão.
Nas três décadas decorridas desde o final da transição para a democracia, a economia registou uma contínua regressão tendencial da evolução do PIB, de uma média anual da ordem de 3,3% até 1998 para pouco mais de 1,0% a partir de 1999, com crescimentos negativos em 1983 (-0,2%), 1984 (-1,9%), 1993 (-2,0%), 2003 (-0,9%) e, novamente em dois anos seguidos, 2008 (-0,04 %) e 2009 (-2,5%). Neste extenso período a economia apenas acelerou nos primeiros anos da integração na CEE e da adesão ao euro, tendo-se seguido longas fases de depressão.(1)
A crise estrutural da economia foi primariamente consequência da quebra da produção nos sectores primário e secundário, a que se associaram o crescimento no sector terciário, a expansão da despesa pública, o aumento do consumo e a diminuição da poupança. No final do ano de 2010, Portugal chegou a uma situação insustentável: um défice da balança comercial que era o maior entre todos os Estados-membros da União Europeia; um défice orçamental de cerca de 9 % do PIB; uma dívida púbica da ordem dos 95 % do PIB, e uma dívida externa bruta (pública e privada, sobretudo bancária) que mais do que duplicava a anterior.
O que se passou em Portugal, e em outros países europeus, “era facilmente previsível à luz da mais elementar teoria económica: baixando rapidamente os juros, aumentou como consequência directa e imediata o endividamento dos particulares, das empresas e do Estado, ao mesmo tempo que baixava a poupança interna. Rareando a poupança interna, os bancos foram buscá-la ao exterior, daí resultando o rápido crescimento do endividamento externo”(2). Um número significativo de Portugueses depende do recurso ao endividamento durante mais de metade das suas vidas, e a precariedade tornou-se num modo de sobrevivência.
Em boa verdade, ainda que factores externos a tenham sempre influenciado, as conturbações económicas do pós-25 de Abril foram, no essencial, novas manifestações da multissecular crise nacional que, fundamentalmente, sempre radicou: na debilidade das estruturas e actividades produtivas e na grande intumescência das classes não produtoras; no domínio das oligarquias mercantis, financeiras, rentistas e usurárias sobre os sectores manufactureiros e empresariais; na persistência de uma mentalidade conservadora, avessa à inovação e ao empreendedorismo; na estreita cumplicidade entre os poderes políticos e económicos; na fraca qualificação do factor trabalho e no seu uso predominantemente extensivo. Portugal viveu sistematicamente na dependência do que veio de fora, fosse em matérias primas, fosse em crédito financeiro.
A Revolução de 25 de Abril de 1974 “nasceu acompanhada da vontade de inventar um outro destino para Portugal”(3). Mas depressa regressaram os males do passado. A adesão à CEE/UE foi vista por muitos sobretudo como uma fonte de dinheiro fácil. Sob o primado do eleitoralismo, do negócio, do compadrio, do enriquecimento fácil, do interesse particular e de outros expedientes, projectou-se segundo lógicas casuísticas e de curto prazo, com a cobertura do poder político a investimentos de necessidade, dimensão e legalidade muitas vezes suspeitas. O resultado traduziu-se no desbaratamento de apoios comunitários, num débil crescimento económico, numa evolução anémica da produtividade e numa tendência para o aumento do desemprego, com incidência especial no de longa duração e no desemprego dos jovens.
Os fundos estruturais, em lugar de serem aplicados no desenvolvimento equilibrado do País e na modernização da economia, alimentaram a recuperação do poder das oligarquias bancária e bolsista, a multiplicação de actividades fraudulentas, o consumismo perdulário e o luxo ostentatório. Abandonou-se boa parte da actividade económica tradicional e pouco se investiu na reorganização empresarial e em novas capacidades produtivas, tendo-se privilegiado a governação mercantil sobre a economia real. A prevalência de lógicas centralistas de planeamento, favoreceu paralelamente a desintegração regional e propiciou a desestruturação das relações territoriais, com reflexos no aumento das assimetrias e no abandono do interior em favor das metrópoles. E tudo perante a passividade de uma boa parte dos cidadãos, mais dada à crítica inconsequente do que ao activismo cívico.
Por outro lado, a injustiça na distribuição dos rendimentos conduziu a níveis de desigualdade social dos mais elevados da União Europeia,(4) enquanto simultaneamente se multiplicaram os privilégios de uma minoria da população. Portugal voltou a regredir para índices próprios de um país precário, sendo actualmente o 20 º mais pobre entre os 27 Estados-membros da União Europeia: dívida pública superior a 100% do PIB; PIB per capita de aproximadamente apenas 2/3 da média da União Europeia; taxa de desemprego à volta dos 15%, a terceira mais elevada da zona euro; baixa de rendimentos das pessoas da ordem dos 15%; cerca de 25% da população vivendo no limiar da pobreza, se não mesmo no da sobrevivência.
A crise política acompanhou a económica: o espaço público e a distribuição dos altos cargos da administração foram hegemonizados pelos partidos do centro; o modelo democrático, económico e social criado pelos primeiros constituintes foi sucessivamente descaracterizado; o papel da participação dos cidadãos na vida pública e no exercício dos seus direitos fundamentais foi progressivamente desvalorizado. O resultado reflecte-se hoje no descrédito das instituições democráticas, no divórcio entre os eleitores e os eleitos, na falta de esperança no amanhã e na crise ética e moral que vem corroendo a República. O passado volta a ser presente e ameaça o futuro!
A crise nacional, europeia e global
A gravidade da situação nacional decorre, porém, de ser também parte de uma crise europeia dentro de uma outra de dimensão global, em resultado do efeito de contágio entre economias interdependentes e da ofensiva neoliberal do capitalismo financeiro, perante a fragilidade e descoordenação das instituições europeias. Os Estados tornaram-se os credores de ultimo recurso para salvar o sistema bancário e estimular a economia, endividando-se a níveis insustentáveis. Mas logo que começaram a sair da recessão técnica o alvo dos mercados financeiros internacionais deslocou-se para as dívidas soberanas e para as políticas de austeridade.
O que agora está sobretudo em causa é a reconfiguração das funções dos Estados através da “promoção de processos políticos de construção de mercados em novas áreas da vida social” e a reforma da administração pública de forma a retirar àqueles “responsabilidades directas na gestão dos sectores estratégicos”, gerando o caldo de cultura ideal “para novos avanços privatizadores, promovidos pelos grupos que entretanto ganharam músculo com os anteriores processos”(5). As dívidas soberanas tornaram-se, em suma, um descarado pretexto para a eliminação do Estado Social, transformado em sujeito da crise quando em rigor o não foi. A reintrodução sub-reptícia do inquérito de meios não passa de um expediente concebido para reduzir progressivamente as prestações sociais, e reduzir ao mesmo tempo “o entusiasmo da classe média por serviços sociais agora vistos como benefício só para os muito pobres”, prática que, “embora pareça razoável, ao pretender proteger a maioria fraca da minoria forte e privilegiada, é uma falsidade que atenta contra a democracia social, fundada no princípio de direitos sociais iguais para todos”, e, mesmo, “um princípio não democrático, e potencialmente totalitário”(6).
O passo seguinte será a eliminação pura e simples dos serviços sociais, que passarão a não ser vistos como bens públicos. Paralelamente, a “expansão politicamente suportada das forças do mercado e o aumento das desigualdades e da desestruturação social que esta expansão sempre gera, conjugada com o esvaziamento progressivo do Estado social assente na provisão pública universal, têm levado (...) a um reforço das áreas de actuação do Estado associadas à repressão e à punição, ou seja, à emergência e reforço de um Estado Penal, que é tanto mais importante quanto mais liberal é o modelo de desenvolvimento socio-económico em causa”(7) .
Conclusão
Os factores da crise são, no essencial, os mesmos que há séculos bloqueiam o desenvolvimento nacional e colocam Portugal numa sistemática dependência externa: fragilidades estruturais na economia (baixas qualificações e competências, modelo extensivo do trabalho, deficiente organização empresarial); asfixia das estruturas produtivas pela proeminência dos interesses financeiros, rentistas e usurários; falta de eficiência do Estado enquanto principal regulador económico e social, mais empenhado em defender os interesses das oligarquias dominantes; afastamento dos cidadãos da participação na vida pública; persistente fraqueza da classe média, esmagada pela carga fiscal. A estes factores estruturais somou-se o “fascínio liberal” das últimas décadas pelo primado da concorrência na política económica, “como se tudo se reduzisse ao dilema concorrência ou proteccionismo”(8).
A superação da crise e o “regresso ao futuro”, passam por um novo modelo político e económico. Por um novo modelo político que, articulando o sistema representativo com o participativo e popular, assegure uma democracia de alta intensidade, promova uma melhor proximidade aos cidadãos, restitua a credibilidade às instituições democráticas, retome os fundamentos sociais da economia e garanta uma distribuição mais igualitária de rendimentos. E por um novo modelo de desenvolvimento sustentável, solidário e inclusivo, que reconstitua o valor do trabalho como pilar central da política económica, estimule uma cultura de empresa assente numa diferente relação organizacional e salarial, valorize as capacidades dos trabalhadores e a criação de competências, e aposte na descentralização administrativa, na coesão territorial e nos dinamismos regionais.
A ultrapassagem da crise é também indissociável de uma Europa politicamente mais integrada e económica e socialmente mais solidária, como destino comum dos povos europeus. Mas que esta opção não seja uma via única. Na nova era multipolar que está a emergir, a diversificação de mercados é uma vantagem económica e o multilateralismo um factor de independência.
* Major General, licenciado em História.
Bibliografia
(1) José Reis, O Tempo dos Regressos ao Futuro: Por um Desenvolvimento Inclusivo, in José Reis e João Rodrigues, “Portugal e a Europa em Crise”, Edição Actual Editora – Julho 2001, p. 16; Maria João Valente Rosas e Paulo Chitas, Portugal: os Números, Ensaios da Fundação. Os valores das variações do PIB foram corrigidos pelos divulgados pelo Banco Mundial.
(2) João Pinto Castro, PIIGS Versus FUKD: Dilemas do Pensamento Económico Provinciano, in José Reis e João Rodrigues, ob. cit., pp. 97-98.
(3) Eduardo Lourenço, Portugal como Destino, in “Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade”, Gradiva – Publicações, Lda, 1999, p. 69.
(4) Segundo um estudo da responsabilidade da Direcção de Emprego, Assuntos Sociais e Inclusão da Comissão Europeia, publicado em Janeiro de 2012, Portugal é o único dos seis países em que as medidas de austeridade prejudicaram mais os mais pobres e menos os mais ricos: os mais pobres perderam 6,1% dos seus rendimentos e os mais ricos perderam 3,9%. Na Grécia há quase um empate, com os mais pobres a perderem 5,9% e os mais ricos 6,1%; na Espanha a relação é de 3,4% para 4%, na Irlanda de 5% para 10,5%, no Reino Unido de 2,5% para 4,2% e na Estónia de 5% para 8,2%. (Público, 14.01.2012, p. 29)
(5) João Rodrigues e Nuno Teles, Portugal e o Neoliberalismo como Intervencionismo de Mercado, in José Reis e João Rodrigues, ob. cit., pp. 36-46.
(6) Tony Judt, “Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos”, Edições 70, Lda, Lisboa, 2010, pp. 144, 161 e 162.
(7) João Rodrigues e Nuno Teles, Portugal e o Neoliberalismo como Intervencionismo de Mercado, in José Reis e João Rodrigues, ob. cit., pp. 45,46.
(8) José Reis, O Tempo dos Regressos ao Futuro: Por um Desenvolvimento Inclusivo, in José Reis e João Rodrigues, ob. cit., p. 21.
Nota do editor: É com muito prazer que aceito, por intermédio do meu amigo, e também colaborador deste blogue, o Diamantino Silva, esta prestigiadada colaboração do general Augusto Monteiro Valente. Neste seu texto, que também vai ser publicado no REFERENCIAL, a revista da Associação 25 de Abril, o autor consegue fazer uma análise bem estruturada e fundamentada da crise nacional e internacional, sem perder de vista aquilo que é endémico na sociedade portuguesa, e que favoreceu o processo degenerativo da nossa coesão económica e social e aquilo que, sem ter sido devidamente avaliado nas suas potenciais consequências negativas, foi importado do exterior, pelo multifacetado processo da europeização e da globalização.