Consensos e pactos para que Saúde?
Desde
há uns meses ganhou novo fôlego uma campanha que, não sendo nova, surpreende
pela sua insistência.
O
actual Presidente da República (PR) lançou uma “cruzada” em torno de um
consenso para a Saúde entre as várias forças políticas.
No
final do passado mês de Março numa visita a um hospital que está inserido numa
PPP (parceria público-privada) afirmou, segundo várias notícias divulgadas na
imprensa, que:
-
a saúde é uma área em que é “ fácil chegar a consensos”.
-
elogiou as PPP considerando-as de interesse público.
-
“ a saúde é uma área prioritária no nosso país. De uma forma suave, vai-se
estabelecendo um consenso e as várias forças políticas vão chegando a acordo,
sendo que a gestão feita pelo ministro da saúde tem ajudado”. - “Desdramatizar
e criar um ambiente de pacificação e resolução de problemas” seriam caminhos
para o tal consenso desejado pelo PR que ainda elogiou o “clima de menos
crispação”.
Passados alguns dias e numa sessão comemorativa do aniversário de uma conhecida organização de beneficência existente na área da saúde, o PR voltou a insistir nessas tónicas ao afirmar que já existe “ um pacto não formalizado”, tendo o ministro da saúde deslizado para uma maior clareza de ideias ao afirmar que o sistema de saúde “não é apenas o Estado”, acrescentando que existem matérias que merecem o “consenso alargado da sociedade”.
No contexto destas declarações colocam-se desde logo diversas interrogações sobre questões de fundo, dado que embora o actual PR afirme agora que a saúde é uma área em que é fácil chegar a consensos, quando foi deputado do PSD votou, há quase 37 anos, contra a Lei do SNS (Serviço Nacional de Saúde).
Poderão alguns dizer que as realizações nestes anos da vigência do SNS foram de tal dimensão e com um tão amplo reconhecimento internacional que conseguiram fazer mudar de opinião alguns dos actores políticos anteriormente tão avessos ao direito constitucional à saúde.
No entanto, há que ter bem presente que o PR em circunstância alguma proferiu a sigla SNS e falou sempre da Saúde em sentido muito abstracto.
Simultaneamente, o actual ministro da saúde, cujas reais posições político-ideológicas sempre foram de uma enorme proximidade com os círculos privados com interesses nesta área, já veio clarificar que sistema de saúde não é só Estado, o que mostra como já vão longe os tempos em que tecia tantas loas ao SNS.
Na base destes posicionamentos e com tantos elogios à mistura, torna-se indispensável reflectir sobre que tipo de política de saúde e sobre que modelo prestador de cuidados se pretendem criar os tais pactos ou consensos.
Quando se fazem declarações sobre o suposto interesse público das PPP, escamoteando o desastre gestionário e social que este modelo já demonstrou na Grã- Bretanha e noutros países onde as receitas ultraliberais conduziram ao colapso dos direitos sociais e concretamente do direito à saúde, certamente que a preocupação de fundo a elas subjacente não é a redinamização do SNS.
Se, por outro lado, virmos qual o comportamento dos mesmos sectores políticos e dos interesses privados perante a acção do ministro da educação aumentam ainda mais as preocupações com esta nova campanha dos consensos.
No caso do ministro da educação, quando as medidas em curso visam, no essencial, defender a escola pública e laica que é um dos pilares fundamentais do espírito republicano que determinou a criação do Estado Democrático tal como o conhecemos, as reacções de hostilidade atingem um nível chocante e revelador do entendimento prático de certos sectores político-partidários quando apregoam o lema “ menos Estado, melhor Estado”: menos Estado para os contribuintes e melhor Estado para os seus círculos clientelares.
As campanhas contra o SNS já tiveram muitos episódios, alguns assentes em argumentos imbuídos de profunda desonestidade política.
Logo após a aprovação da Lei do SNS surgiu a campanha, que durou largos anos, de que a existência de um SNS significava a estatização da saúde.
Posteriormente, várias entidades foram publicando dados que demonstravam que o sistema de saúde no nosso país era a negação dessa apregoada estatização e que era entre a generalidade dos países europeus ocidentais um dos que possuía a percentagem mais elevada de despesas privadas.
O próprio relatório da OMS divulgado no início de 2001 veio referir que as despesas públicas de saúde no nosso país eram somente de 57,5% e que países tidos como exemplos marcantes da economia de mercado casos da Finlândia, da França e do Japão tinham, respectivamente, 73,7%, 76,9% e 80,2%.
De facto, o nosso sistema de saúde sempre foi um modelo que de um ponto de vista geral se pode considerar misto, embora existindo o SNS como instrumento constitucional de garantia do direito à saúde.
A componente privada sempre teve uma “fatia” importante do montante global das verbas envolvidas, apesar de a chamada pequena e média empresa médica portuguesa ter sido gradualmente “engolida” por grande grupos económicos, alguns de carácer multinacional em áreas diagnósticas e terapêuticas mais específicas.
Outra das campanhas que atingiu uma grande dimensão foi a de apregoar que o SNS era gratuito e, como tal, insustentável para a economia do país.
Como
todos sabemos, o SNS ou qualquer política social pública está dependente dos
impostos pagos pelos contribuintes e nunca são gratuitas.
É
através do pagamento dos impostos proporcionais aos rendimentos auferidos por
cada um que se estabelece um esforço solidário entre os vários sectores da
população para assegurar direitos sociais elementares à dignidade da existência
humana.
Aquilo
que se torna cada vez mais evidente é que são os dinheiros públicos que
viabilizam, de forma decisiva, os negócios privados no sector da saúde,
nomeadamente por via dos subsistemas públicos de saúde como a ADSE e também das
PPP.
É possível algum consenso entre os sectores
que defendem o direito constitucional à saúde e o seu instrumento operacional,
o SNS, e os sectores que sempre que chegaram ao governo tudo fizeram para
destruir esse direito?
Ou
o tal consenso seria a chamada “combinação público-privada” que tem como
objectivo central legitimar o aprofundamento da parasitação dos dinheiros
públicos pelos sectores privados, levando ao definhamento progressivo do SNS e
à transformação dos serviços públicos de saúde em serviços degradados para
pobres e indigentes ?
Ao
longo destas mais de quatro décadas de Democracia foi na base do texto da
Constituição da República que se estabeleceram os pactos políticos e sociais
para salvaguarda do Estado Social e, por via dia deste, da própria coesão
social.
Quando
alguns sectores políticos atacam o texto constitucional e clamam por mais
revisões, aquilo que visam é desfigurá-lo a tal ponto que nem a garantia do
próprio regime democrático aí esteja expressa.
Aquilo
que apelidam de grande carga ideológica já foi substancialmente “limada” nas
revisões constitucionais efectuadas.
Se
repararmos bem, essas acções já nem sequer conseguem especificar os aspectos
que careciam de nova revisão, limitando-se a argumentar com ridículas acusações
de bloqueio proveniente das disposições constitucionais para, no fundo, tentar
esconder o fracasso das suas políticas e os seus dramáticos resultados sociais,
como se pôde verificar com a anterior governação.
A nossa Constituição da República não é muito
diferente dos conteúdos dos textos constitucionais dos países europeus mais
avançados nos direitos políticos e sociais.
Qualquer
acordo de regime ou pacto na saúde terá de evoluir em torno das disposições da
nossa Constituição e da garantia geral e universal do direito à saúde aí
estabelecida.
Outra
questão bem diferente é a ideia de um hipotético consenso que a ser levado à
prática conduziria inevitavelmente à liquidação do SNS é à mercantilização dos
cuidados de saúde por via de combinações entre o pagamento publico e a
prestação privada, segundo um modelo próximo do inglês ou mesmo do americano.
A
depauperização significativa de sectores numerosos da nossa população não
permite mais políticas antisociais que continuem a dilacerar a coesão social e
a tornar a vida de muitos cidadãos num inferno quotidiano para poderem
subsistir.
O
SNS tem desempenhado um insubstituível papel de garantia de alguns parâmetros
importantes em termos da equidade social.
O
economista argentino Federico Tobar chamou a atenção que “diversos estudos
sobre equidade no financiamento de serviços geraram evidência suficiente para
afirmar que o gasto público em saúde, nomeadamente nos cuidados primários,
regista um elevado impacto redistributivo, permitindo corrigir as desigualdades
que gera o funcionamento da economia”.
Amartya Sen recebeu o Nobel da Economia em
1998 na base da sua análise de que os países onde as condições de saúde são
mais uniformes no seio da população são aqueles que apresentam melhores
condições e potencialidades para o crescimento económico.
Perante
níveis iguais de investimento, crescem primeiro as economias baseadas em
sociedades mais equitativas.
O
SNS é uma construção que necessita de encontrar permanentemente respostas novas
e céleres aos sucessivos problemas novos que se lhe deparam.
Uma perspectiva imobilista de defender somente
o conceito sem ter em conta a realidade difícil em que ele se insere, realidade
essa sempre em mudança, seria desastrosa para a sua continuidade como um dos
factores centrais de equidade e de coesão sociais.
O
sector da saúde é provavelmente aquele que nas últimas décadas tem conhecido
uma maior incorporação e revolução tecnológicas com a introdução sucessiva de
novos e mais sofisticados meios técnicos e um desenvolvimento contínuo do
conhecimento científico.
Como a experiência histórica demonstra, de
forma muito clara, todas as revoluções tecnológicas determinam mudanças
radicais nos modos de organização da produção e do trabalho.
Aquilo
que podemos verificar é que os modos de organização, por exemplo, nos hospitais
são os mesmos há largas décadas.
Por
outro lado, não existem incentivos à inovação e quando isso não existe as
organizações, sejam elas quais forem, estão condenadas à decadência.
Os
profissionais que têm aparecido em vários serviços públicos de saúde a defender
métodos inovadores e de maior eficácia organizacional são logo constituídos
como alvos a abater por parte de grande parte dos “clientes” nomeados pelo
Poder político.
A
redinamização do SNS é um imperativo humanista e de cidadania, na base do
respeito pelas disposições constitucionais.
Reformar
o SNS tem de se enquadrar numa clara perspectiva de o melhorar continuamente,
de descentralizar os seus níveis de decisão, de o tornar mais próximo dos
cidadãos que o pagam e que dele necessitam e de ser objecto de prestação
regular de contas por aqueles que são nomeados para gerir os seus múltiplos
serviços.
Aqueles
que se posicionam em vários quadrantes políticos mas que tem profundas
preocupações sociais efectivas e não aceitam a mercantilização do sofrimento
humano hão-de saber criar as plataformas de convergência e de entendimento que
permitam reerguer o SNS e introduzir os mecanismos fundamentais para a sua
integral dinamização, como, aliás, já aconteceu em anteriores momentos
críticos.
Mário Jorge Neves
Médico, dirigente sindical