Príncipe
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me
Ana Hatherly _ in
"Um Calculador de Improbabilidades"
***«»***
Morreu Ana
Hatherly
Escritora, artista plástica e cineasta, Ana
Hartherly integrou, ao nível da poesia, o movimento experimentalista, o
concretismo, que surgiu no Brasil, de forma estruturada (publicou-se um
manifesto), em meados do século passado, tendo-se expandido para a Europa,
onde veio a potenciar a afirmação de vários poetas, que procuravam ultrapassar o
modernismo.
Ana Hartherly foi a primeira autora portuguesa a
escrever um poema “concreto”, uma forma de escrever poesia, em que o poema
perde o conceito absoluto (não vale só por si), antes se articula, para ganhar
uma maior expressividade, com outras formas artísticas ou com outros formas
comunicacionais, entretanto inventadas, como seja a folha de papel ou o mural,
onde ele é escrito de forma não convencional (dispersão desordenada, com uma disposição
inteligível e esteticamente conseguida, dos vocábulos, frases e caracteres).
Na prosa, Ana Hartherly escreveu, entre outros “O
Mestre” e o conto “No Restaurante”, que tiveram várias edições em Portugal e no
Brasil e em mais de uma dezena de países.
Como académica (era professora catedrática da
Universidade Nova de Lisboa), destacou-se também ao nível do ensaio.
Alexandre
de Castro
1 comentário:
Integrada na corrente experimentalista dos anos 60 em Portugal, Ana Hatherly explorou as mais diversas possibilidades visuais da palavra e da caligrafia e a relação entre desenho e escrita.
Esteve associada à revista "Poesia Experimental", organizada por Herberto Hélder e António Aragão, e da qual saíram dois volumes, o primeiro em 1964 e o segundo em 1966.
Expresso
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