"As palavras não mudam a realidade. Mas ajudam-nos a pensar, a conversar, a tomar consciência. E a consciência, essa sim, pode mudar a realidade.
As minhas primeiras palavras são, por inteiro, para os portugueses que vivem situações de dificuldade e de pobreza, de desemprego, que vivem hoje pior do que viviam ontem.
É neles que penso neste 10 de Junho.
A regra de ouro de qualquer contrato social é a defesa dos mais desprotegidos. Penso nos outros, logo existo (José Gomes Ferreira). É o compromisso com os outros, com o bem de todos, que nos torna humanos.
Portugal conseguiu sair de um longo ciclo de pobreza, marcado pelo atraso e pela sobrevivência. Quando pensávamos que este passado não voltaria mais, eis que a pobreza regressa, agora, sem as redes das sociedades tradicionais.
Começa a haver demasiados “portugais” dentro de Portugal. Começa a haver demasiadas desigualdades. E uma sociedade fragmentada é facilmente vencida pelo medo e pela radicalização.
Façamos um armistício connosco, e com o país. Mas não façamos, uma vez mais, o erro de pensar que a tempestade é passageira e que logo virá a bonança. Não virá. Tudo está a mudar à nossa volta. E nós também.
Afinal, a História ainda não tinha acabado. Precisamos de ideias novas que nos dêem um horizonte de futuro. Precisamos de alternativas. Há sempre alternativas.
A arrogância do pensamento inevitável é o contrário da liberdade. E nestes estranhos dias, duros e difíceis, podemos prescindir de tudo, mas não podemos prescindir nem da Liberdade nem do Futuro.
O futuro, Minhas Senhoras e Meus Senhores, está no reforço da sociedade e na valorização do conhecimento, está numa sociedade que se organiza com base no conhecimento.
Há a liberdade de falar e há a liberdade de viver, mas esta só existe quando se dá às pessoas a sua irreversível dignidade social (Miguel Torga).
Gostaria de recordar o célebre discurso de Franklin D. Roosevelt, proferido num tempo ainda mais difícil do que o nosso, em 1941. A democracia funda-se em coisas básicas e simples: igualdade de oportunidades; emprego para os que podem trabalhar; segurança para os que dela necessitam; fim dos privilégios para poucos; preservação das liberdades para todos.
Numa situação de guerra, Roosevelt sabia que os sacrifícios têm de basear-se numa forte consciência do social, do interesse coletivo, uma consciência que fomos perdendo na vertigem do económico; pior ainda, que fomos perdendo para interesses e grupos, sem controlo, que concentram a riqueza no mundo e tomam decisões à margem de qualquer princípio ético ou democrático. É uma “realidade inaceitável”.
Em mar de águas revoltas, é preciso manter o rumo, ter a sabedoria de separar o acessório do fundamental. A Europa não é uma opção, é a nossa condição. Uma Europa com uma nova divisa: liberdade, diversidade, solidariedade.
A Europa é o nosso futuro, mas não nos iludamos. Ou nos salvamos a nós, ou ninguém nos salva (Manuel Laranjeira). Falemos, pois, de Portugal e dos portugueses.
Pelo Tejo fomos para o mundo… mas quantas vezes estivemos ausentes dentro de nós? Preferimos a Índia remota, incerta, além dos mares, ao bocado de terra em que nascemos (Teixeira de Pascoaes).
A Terra ou o Mar? Portugal ou o Mundo? A pergunta foi feita por todos aqueles que pensaram Portugal.
No final do século XIX, um homem da Geração de 70, Alberto Sampaio, explica que as nossas faculdades se atrofiaram para tudo que não fosse viajar e mercadejar. Nunca nos preocupámos com a agricultura, nem com a indústria, nem com a ciência, nem com as belas-artes. As riquezas que fomos tendo “mal aportavam, escoavam-se rapidamente, porque faltava uma indústria que as fixasse”, e o património da comunidade, esse, “em vez de enriquecer, empobrecia”.
Nos momentos de prosperidade não tratámos das duas questões fundamentais: o trabalho e o ensino. Nos momentos de crise é tarde: fundas economias na administração aumentariam os desempregados, e para a reorganização do trabalho falta o capital; falta o tempo, porque a fome bate à porta do pobre. Então a emigração é o único expediente: silenciosa e resignadamente cada um vai partindo, sem talvez uma palavra de amargura.
Este texto foi escrito há 120 anos. O meu discurso poderia acabar aqui. Em silêncio.
Senhor Presidente da República,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
É esta fragilidade endémica que devemos superar. O heroísmo a que somos chamados é, hoje, o heroísmo das coisas básicas e simples – oportunidades, emprego, segurança, liberdade. O heroísmo de um país normal, assente no trabalho e no ensino.
Parece pouco, mas é muito, o muito que nos tem faltado ao longo da história.
Porque Portugal tem um problema de organização dentro de si:
- Num sistema político cada vez mais bloqueado;
- Numa sociedade com instituições enfraquecidas, sem independência, tomadas por uma burocracia e por uma promiscuidade que são fonte de corrupção e desperdício;
- Numa economia frágil e sem uma verdadeira cultura empresarial.
Estão a surgir, é certo, sinais de uma capacidade de adaptação e de resposta, de baixo para cima. Precisamos de transformar estes movimentos numa ação sobre o país, numa ação de reinvenção e de reforço da sociedade.
Chegou o tempo de dar um rumo novo à nossa história.
Portugal tem de se organizar dentro de si, não para se fechar, mas para se abrir, para alcançar uma presença forte fora de si.
Não conseguiremos ser alguém na Europa e no mundo, se formos ninguém em nós.
Não é por sermos um país pequeno que devem ser pequenas as nossas ambições. O tamanho não conta; o que conta, e muito, é o conhecimento e a ciência.
Senhor Presidente de República,
O convite de V. Ex.ª, que muito agradeço, é um gesto de reconhecimento das universidades e do seu papel no futuro de Portugal.
Em Lisboa, na célebre Conferência do Casino (1871), Antero disse o essencial: A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência: foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos.
Antero tinha razão e o século XX ainda mais razão lhe veio dar. O drama de Portugal, do nosso atraso e da nossa dependência, tem sido sempre o afastamento de sociedades que evoluíram graças ao conhecimento e à ciência.
Nas últimas décadas, realizámos um esforço notável no campo da educação (da escola pública), das universidades e da ciência.
Pela primeira vez na nossa história, começamos a ter a base necessária para um novo modelo de desenvolvimento, para um novo modelo de organização da sociedade.
É uma base necessária, mas não é ainda uma base suficiente.
Existe conhecimento. Existe ciência. Existe tecnologia. Mas não estamos a conseguir aproveitar este potencial para reorganizar a nossa estrutura social e produtiva, para transformar as nossas instituições e empresas, para integrar uma geração qualificada que, assim, se vê empurrada para a precariedade e para o desemprego.
É este o nosso problema: a ligação entre a universidade e a sociedade. É esta a questão central do país: uma organização da sociedade com base na valorização do conhecimento.
Insisto. Apesar de todos os contratempos, Portugal tem hoje uma capacidade instalada, nas universidades e na ciência, que nos permite sair de uma posição menor, periférica, e superar o fosso tecnológico que se cavou entre nós e a Europa.
Não temos tempo para hesitações. As universidades vivem de liberdade, precisam de ser livres para estarem à altura do que a sociedade lhes pede.
É por aqui que passa o nosso futuro, pela forma como conseguirmos ligar as universidades e a sociedade, pela forma como conseguirmos que o conhecimento esteja ao serviço da transformação das nossas instituições e das nossas empresas.
É por aqui que passa o nosso futuro, um outro futuro para Portugal.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Também Lisboa se está a transformar graças à criação, à energia da cultura e da ciência, graças aos estudantes que aqui chegam de todas as partes do mundo.
Lisboa é dos poetas. Em Abril, a poesia esteve na rua e fez-nos emergir da noite e do silêncio. A poesia volta sempre à rua, através desta língua que é a nossa mátria, desta língua que nos permite estar connosco e com os outros, nas comunidades que nos multiplicaram pelo mundo e nos países que são parte de nós.
25 anos depois, não esqueço José Afonso: Enquanto há força, cantai rapazes, dançai raparigas, seremos muitos, seremos alguém, cantai também.
Cantemos todos. Por um país solidário. Por um país que assegura o direito às coisas básicas e simples. Por um país que se transforma a partir do conhecimento.
Não podemos ser ingénuos. Mas denunciar as ingenuidades não significa pôr de lado as ilusões, não significa renunciar à busca de um país liberto, de uma vida limpa e de um tempo justo (Sophia).
Foi esta busca que me trouxe ao Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas."
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Este texto do ilustre académico Sampaio da Nóvoa, reitor da Universidade de Lisboa, do qual eu já tinha anotado referências na imprensa, mas que, só agora, pude ler na íntegra, tinha, obrigatoriamente, de me ter sido enviado por uma "poeta", já que, e ultrapassando intencionalmente a dominante ortodoxia discursiva oficial, a maior parte das vezes com sabor a ranço, ele constitui-se num verdadeiro "poema", além de, por outro lado, o autor ousar nele afirmar que "Lisboa é dos poetas".
Sampaio da Nóvoa, despojado de uma qualquer mácula patrioteira, comum aos políticos que mais têm atraiçoado o nosso sonho redentor, coloca a centralidade do problema de Portugal no conhecimento e no trabalho, onde a universidade, se constitui numa alavanca fundamental. E tem razão. A ignorância e a iliteracia são a matriz do subdesenvolvimento. Os avanços civilizacionais fizeram-se à custa da aquisição do conhecimento. E o trabalho, por ser base da realização individual e coletiva, tem de ser valorizado e dignificado em todas as suas múltiplas dimensões. Limitar o conhecimento e reduzir o trabalho à mera condição de mercadoria é a melhor maneira de escravizar um povo, sem que esse povo, disso tome consciência. Mas isto não basta. Em Portugal, é necessário cavar mais fundo. A imobilidade da sociedade só pode ser vencida quando forem erradicadas as atuais classes possidentes, herdeiras dos vícios e da arrogância das elites aristocráticas do passado e, posteriormente, das burguesias endinheiradas, que sempre se confundiram com o próprio Estado. O povo português sempre foi uma coutada dessas elites predadoras e ociosas, que nunca tiveram um projeto coerente e ambicioso para Portugal.