O pastor
de lobos
Homo
homini lupus [O homem é
o lobo do
homem – locução latina]
A história de Bento XVI só pode ser compreendida
quando se analisam os papéis desempenhados pelos personagens que estiveram ao
lado dele, como o arcebispo alemão Georg Gänswein, o “bello Georg”, prefeito da
Casa Pontifícia, o mordomo Paolleto Gabriele, o monsenhor Carlo Maria Viganò,
ex-governador do Vaticano, e o cardeal Tarcísio Bertone, secretário de Estado
do Vaticano. O pastor de Cristo alimentou com as próprias mãos os lobos que o
cercavam e viu-se, ao final, devorado por seus próprios lobos.
A análise é de Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ
A análise é de Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ
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O mundo foi apanhado de surpresa com o anúncio,
em latim, da renúncia de Joseph Ratzinger, Bento XVI, ao pontificado, no último
dia 11/02/2013. Alguns ditos especialistas, logo chamados de “vaticanólogos”,
apoiados por bispos e cardeais – inclusive aqui no Brasil – correram a declarar
que “sinais” – uma expressão bem apocalíptica – já vinham sido dados por Bento
XVI. Tratava-se de salvar a face ante um fato de arbítrio absoluto e sem
consulta ao corpo da Igreja, inédito desde o final da Idade Média. Ocorre que o
“L´Osservatore Romano” – o órgão oficial da Igreja Católica –, na sua edição
dedicada à renúncia papal, declarou-se “surpreendido” e o ato papal foi
considerado pelo jornal oficial como “desconcertante”. Pouco antes o mesmo
jornal declarara – em razão dos escândalos oriundos do Vaticano –, de forma
compungida, que o Papa estava cercado de lobos. Quem eram os lobos?
Um passado
ardente
A eleição de Bento XVI em 2005 criou, desde
logo, uma grande polémica, em especial pela veiculação mundial das fotos de
Ratzinger em uniforme da Juventude Hitleriana (Hitlerjugen/HJ), durante o
Terceiro Reich. A própria Igreja, e a sua ala conservadora, apressaram-se em
justificar a “adesão nazi” do Papa através de dois argumentos de peso. Em
primeiro lugar, Ratzinger tinha, então, 14 anos de idade. Acusar alguém, 60
anos depois, de uma escolha feita aos catorze anos é ilógico e, no limite,
cruel. Muitos homens de direita, mesmo fascistas, arrependeram-se e foram, daí
em diante, homens dignos. No Brasil mesmo, o vanguardista Dom Hélder Câmara foi
um militante integralista na sua juventude, antes de assumir, de coração
fraterno, a Teologia da Libertação. Logo, condenar o adolescente “Joseph” para
atingir o Papa Ratzinger não seria justo. Outro argumento reside na
obrigatoriedade de todos os jovens, entre 14 e 18 anos, de pertencerem a
Juventude Hitleriana – “Hitlerjugend”.
De fato, em 1936, Hitler ordenou a integração de
todas as organizações juvenis, incluindo as “juventudes” católicas e
evangélicas, ao “Hitlerjugendbund”. Houve reação e muitos jovens se recusaram,
com grande risco pessoal. Daí a publicação de um novo decreto – o
“Jugenddienstpflicht” ou Serviço Obrigatório dos Jovens, em 1939 –, já em clima
de pré-guerra. Ratzinger pertenceu a “Hitlerjugend” desde 1941, passando para a
Wehrmacht, as forças armadas, em 1943. Havia opção? A resposta não é absoluta.
Isso depende, é pessoal e julgar é difícil e pode ocorrer grave injustiça.
Cerca de 10% dos jovens alemães recusaram aderir a HJ, apresentando razões
morais, religiosas ou mesmo físicas. Na Baviera, onde Ratzinger vivia, este
número chegou a 20% dos jovens – muitos católicos não aceitaram o “catolicismo
Ariano” (ou Positivo) proposto por Hitler.
Em especial na Baviera, profundamente católica,
a oposição passiva de católicos foi bastante grande. A ordem de assassinato de
doentes mentais – considerados um “peso morto” para a raça ariana – provocou,
em especial, protestos explícitos do clero católico. A “Aktion T4”, como era
chamada o programa de eliminação de doentes mentais e de deficientes físicos,
chegou até a família Ratzinger quando um primo de Joseph, portador da Síndrome
de Down – um entre as 70 mil vítimas -, foi morto por ordem do Estado nazi.
Mesmo assim a família Ratzinger calou-se. O bispo de Munster, Clemens Von
Galen, no entanto, protestou corajosamente contra os assassinatos, inclusive
lendo homilias que denunciavam o horror do regime nazi (Von Galen foi,
significativamente, beatificado por Bento XVI em 2006). A partir de 1941 vários
mosteiros foram atacados e destruídos por nazis. Era a acção “Klosterstum”,
ordenada por Heinrich Himmler, líder das SS – foi o mesmo ano que Joseph
ingressou na Juventude Hitleriana. Foi neste mesma Baviera que jovens, muitos
jovens, organizaram uma ampla rede de resistência denominada “A Rosa Branca” -
Die Weisse Rose” -, que culminaria na decapitação Sophie (1921-1943) e Hans
Scholl (1918-1943), irmãos, cristãos e resistentes por ordem de um tribunal
nazi.
Muitos outros mantiveram uma postura discreta,
mas sempre que possível sabotavam, descumpriam ou ignoravam as ordens do
regime, inclusive acolhendo e protegendo judeus e outras vítimas do regime.
Mas, estas são opções de fórum íntimo, pertencem a cada um. A maioria dos
jovens aceitava a convocação para a Wehrmacht, posto que a recusa fosse crime
de deserção, mas recusaram a HJ e a SS, procurando na Wehrmacht uma saída
“nacional” e não partidária. A Wehrmacht, que também cometeu terríveis
atrocidades, era a força militar nacional; já a HJ e as SS (e antes as SA)
representavam o regime e o seu terror. Ratzinger aceitou a ordem de adesão a
HJ. Aqueles que recusam perdiam o direito a estudar, frequentar clubes ou
associações esportivas ou culturais e eram, frequentemente, hostilizados na
escola. Ratzinger conseguiu a sua matrícula e prosseguiu em seus estudos, mesmo
num tempo de martirização da Igreja. Que Hitler era incompatível com a
fraternidade cristã é óbvio.
Cristãos como Martin Niemöller, e centenas de
padres franceses e holandeses foram exterminados em KZ por protegerem judeus e
até comunistas. Outros pagaram com a vida e a liberdade a denúncia do nazismo
como inumano como o Padre Bernhard Lichtenberg, preso em 1941 e morto em Dachau
neste mesmo ano de 1943. Mas, “Joseph” tinha, então, 14 anos! Estamos frente
uma questão difícil e não creio que possamos, aqui, fazer juízos de valor sem
viver sob as mesmas condições que informaram as decisões de Joseph. Nós, no
Brasil, vivemos uma ditadura recente. Como vivemos então? Quantos fizeram
serviço militar? Quantos fingiram não ver o que se passava... Quantos
aplaudiram o “Milagre Econômico”? Quantos políticos e ministros da Ditadura –
que não eram adolescentes de 14 anos! - estão hoje no Congresso Nacional?
Julgando ações e palavras
Podemos, contudo, fazer um juízo, claro e
inequívoco, sobre o Papa Ratzinger, suas ações e suas palavras. Claro que é um
conservador, contrário a adoção, por exemplo, de medidas singularmente
importantes, como o uso da chamada “camisinha” em áreas devastadas pela AIDS da
África. Mas Dom Eugênio Salles, ou Winston Churchill, também eram conservadores
e foram grandes democratas. A questão central sobre o Papa, mais uma vez, é
outra: quais suas simpatias políticas e como encarou o Regime Hitleriano? Do
jovem Joseph não temos material, cartas ou testemunhos, para afirmar com
certeza suas simpatias ou antipatias. Contudo, quando o Papa Ratzinger visitou
o Campo de Extermínio de Auschwitz, em 2006, insistiu, de público, numa tese
amplamente desacredita pela moderna historiografia sobre o nazismo. Na ocasião,
o Papa proclamou, em face de sobreviventes, que o Holocausto “... foi resultado
da acção de um grupo de criminosos que abusaram do povo alemão para se servir
dele...”
Essa versão da História é inaceitável, em
especial para um homem com a formação intelectual de Ratzinger. Os alemães
apoiaram, votaram, participaram, foram para as ruas e delataram em massa seus
concidadãos judeus ou não, oponentes políticos, ciganos, gays e cristãos, como
as Testemunhas de Jeová (que se recusaram a dizer “Heil, Hitler!” – “heil”,
salve em alemão, só poderia ser usado para com Deus). Igualar os alemães como
as suas vítimas é uma ofensa e talvez encubra o próprio desejo de se
autodesculpar. Ratzinger foi além: declarou que os alemães foram, eles também,
vítimas de Hitler. Assim, tornava-se fácil lançar toda a culpa num pequeno
punhado de homens e desculpar as multidões que apoiaram e lucraram com o
nazismo e a perseguição dos judeus.
Em especial Ratzinger ofendeu milhões de vítimas
do Holocausto ao afirmar que a freira Edith Stein foi uma vítima cristã e alemã
dos nazis. Ora, Edith Stein era uma judia, nascida na Alemanha, convertida ao
cristianismo e que, entretanto, mesmo sendo freira, foi morta pelos nazis.
Posto está que a “irmã” Edith não foi morta por ter nascido na Alemanha ou por
ser uma religiosa cristã: ela foi morta, em 1942, no campo de Auschwitz, por
ser judia! Ao enfatizar a sua escolha “cristã”.
A irrelevância do Holocausto para Bento XVI
tornar-se-ia obvio três anos mais tarde, em 2009, quando, por decisão pessoal,
o papa alemão suspendeu a excomunhão do bispo inglês Richard Williamson, que
defendeu publicamente a inexistência da matança em massa de judeus e oponentes
do Terceiro Reich. João Paulo II – um polonês que sofreu a ocupação alemã –, em
face do escândalo mundial da negação do Holocausto e das afirmações do bispo
sobre a veracidade dos chamados “Protocolos dos Sábios de Sião”, excomungou o
bispo, impedindo a sua pregação, mas Bento XVI o perdoou-o e reintegrou-o na
Santa Madre Igreja. É sobre este Ratzinger, e não sobre o menino “Joseph”, que
cabem julgamentos morais. Neste caso, Ratzinger trouxe os lobos para o seu
convívio.
De teólogo
a senhor dos dogmas
Joseph Ratzinger foi, ou é (não se sabe bem se
ele continuará a usar o titulo papal ou apenas o tratamento de bispo emérito),
o sétimo papa de origem alemã (há alguma controvérsia aqui) e o primeiro Papa,
depois de séculos, a ter a sua origem na Sagrada Congregação Para a Fé – a
antiga “Santa Inquisição” –, o organismo da Igreja Católica responsável pela
manutenção da ortodoxia dos dogmas do catolicismo e, nos séculos XVI e XVII,
por milhares de condenações cruéis de dissidentes cristãos e de judeus, mortos
em milhares de fogueiras.
A função central da Congregação é a defesa
intransigente dos dogmas da Igreja. A maior parte destes tem a sua origem na
luta contra o Protestantismo – considerado como heresia – conforme o Concílio
de Trento (entre 1545 e 1563). Mais tarde, no século XIX, quando a Igreja foi
confrontada com a ascensão do Liberalismo e dos Socialismos, e mais importante
de tudo, com a luta contra a emergência do Estado Nacional Italiano (que
expropriou as terras da Igreja e reduziu os territórios do papa à cidade-estado
do Vaticano), em 1870.
A resposta do Vaticano foi, então, cabal, com a
proclamação, durante o Concílio Vaticano I, em 1870, da Constituição Papal
“Pastor Aeternus”, o dogma da “Infalibilidade” papal. Tratava-se de colocar, em
questões de fé e de moral, a palavra do papa como verdade absoluta,
inquestionável. Da mesma forma, como as palavras sacramentais se realizam pela
força da sua verdade mística.
Ratzinger, na direção da Sagrada Congregação
Para a Fé, foi um defensor ferrenho de tais dogmas, em especial do conceito de
verdade como a própria natureza dos sacramentos, como o batismo, que realiza
por si só, o que as palavras pronunciadas pelo sacerdote prometem. Vários
teólogos, como Leonardo Boff, por sua vez, asseguram que todas as palavras
ditas com amor e fraternidade – inclusive “eu te amo” – possuem o mesmo valor
sacramental daquelas pronunciadas por ofício sacerdotal. Neste caso, o amor e a
fraternidade possuiriam a força do sacramento. Leonardo Boff, ex-aluno de
Ratzinger, foi condenado, então, pelo seu ex-professor ao silêncio “obsequioso”
– um basta ao debate no seio da Igreja!
A carreira como guardião do conservadorismo
Desde 1981 até à sua eleição, em 2005, Ratzinger
exerceu com vigor, e grande conservadorismo, a direção da Sagrada Congregação
Para a Fé, de onde desenvolveu, por exemplo, uma acção constante e consistente
contra os representantes da Teologia da Libertação e o clero progressista, ou
simplesmente humanista e preocupado com as condições imperiosas de homens e
mulheres “viverem também no mundo”. Temas como a “fuga” de sacerdotes e de
fiéis, o papel dos leigos e das mulheres na condução da Igreja, o celibato dos
sacerdotes, as relações com os avanços da ciência e, em especial, o surto de
pedofilia que abalou os católicos foram tratados com menor atenção ou, mesmo,
desprezo.
Na sua acção como condutor da Congregação Para a
Fé, o cardeal Ratzinger voltou-se contra nomes renomados do “aggiornamento” da
Igreja, teólogos que procuravam – ante os desafios que afligem a Igreja
pós-conciliar (Concílio Vaticano II, 1962-65) – como o Padre Ernesto Cardenal
(1925), da Nicarágua, Hans Kung (1928), teólogo alemão que criticava duramente
o dogma da Infalibilidade Papal e o monopólio da Cúria Romana sobre o conjunto
da Igreja Católica e, ainda, Leonardo Boff (1938), teólogo brasileiro, defensor
de uma intensa abertura da Igreja para que fiéis, laicos ou consagrados assumam
maiores responsabilidades na condução da Igreja. Em todos estes casos, coube a
Ratzinger – mesmo a duríssima e pública advertência de João Paulo II contra o
Padre Cardenal na Nicarágua – a condução dos dossiês de condenação.
Cabe destacar que uma das acusações básicas da
Sagrada Congregação da Fé contra os teólogos progressistas era imiscuir-se com
a política, com a gestão do Reino deste mundo, abandonando ou prejudicando a
Igreja e a sua dimensão mística. Ora, Ratzinger, impelindo João Paulo II,
condenava de forma acerba a acção política de religiosos, como do Padre
Cardenal em 1983 (suspenso “Ad Divinis” em 1985). Mas Ratzinger e Woityla
calaram-se, agindo no silêncio e colaborando com o governo de Ronald Reagan nas
suas ações clandestinas destinadas a desestabilizar os regimes comunistas na
Europa Oriental, em especial na Polônia. Ou, ainda, paralisar o apoio das
comunidades eclesiais de base aos movimentos antiditatoriais na América Latina,
onde milhares de pessoas eram presas e torturadas, inclusive religiosos.
A cegueira em face dos direitos humanos
Na verdade, a Igreja de Ratzinger calou-se sobre
a brutal ditadura argentina, sobre a tortura, os sequestros de bebés e os voos
da morte – o que explica o desprezo de Cristina Kirchner para com o clero do seu
país. O mesmo Vaticano não só se calou no massacre de opositores durante a
ditadura Pinochet, como ainda – em 05/04/1999 – o Cardeal Jorge Medina (1926),
chileno, amigo de Ratzinger, pediu, em sigilo, ao governo britânico, em nome do
Vaticano, a libertação, por “motivos humanitários”, de Augusto Pinochet, então
preso em Londres. Coube a Medina, Prefeito da Congregação do Culto Divino no
Vaticano, anunciar em 2005 o “Habemus Papa” que entronizava Ratzinger como
Bento XVI. Medina foi, ainda, o reitor da PUC de Santiago por pedido pessoal de
Pinochet, que o considerava mais adequado para controlar o movimento estudantil
chileno. Tratava-se de substituir no cargo, de forma excêntrica, o cardeal Raul
Silva Henriquez, considerado pelo almirante Jorge Sweet Madge como defensor dos
Direitos Humanos. Desta forma, Medina ascendeu na hierarquia chilena, tornou-se
amigo de Ratzinger e foi o seu principal eleitor em 2005.
Em suma, a Sagrada Congregação Para a Fé
mostrou-se, sob o domínio de Ratzinger, cega do “olho esquerdo”, participando e
dirigindo ativamente toda acção contra a Teologia Progressista e mesmo contra
os movimentos sociais no mundo. Outro amigo e correligionário de Ratzinger, e
que faz rápida carreira no Vaticano, é o cardeal de Lima, Juan Luis Cipriani
(1943), figura chave na eleição do papa alemão. Cipriani, bispo de Ayacucho no
Peru, foi acusado, por inúmeras organizações de direitos humanos, de negar
auxílio às vítimas da guerra contra o Sendero Luminoso. Mesmo figuras
moderadas, como Mario Vargas Llosa, acusaram Cipriani, duramente, de ocultar os
crimes da Era Fujimori e de acusar os parentes das vítimas do Massacre de La
Cantuta de “traição à fraternidade” por exigirem a punição dos militares
responsáveis pela morte de um professor e nove estudantes universitários em
1992.
Cipriani, que jamais falou sobre os escândalos
de pedofilia na Igreja, impediu a organização de um grupo de estudantes gays da
Universidade Pontifícia Católica e, por fim, declarou as organizações de luta
pelos direitos humanos como “esa cojudez [essa loucura]”, numa linguagem muito
pouco canónica. Foi neste ambiente, povoado de lobos em hábitos negros, no
interior da burocracia do Vaticano, que Ratzinger construiu o seu caminho para
o papado.
Um papa
traído?
Os média internacionais, principalmente aqueles
que são informados pela hierarquia católica, procurou, após a perplexidade
inicial, atribuir ao estado de saúde debilitado de Ratzinger as razões da
renúncia. Ora, tal motivação deu origem, de imediato, a dois questionamentos:
de um lado, Ratzinger sempre se declarou contrário ao instituto da renúncia de
membros da hierarquia. Assim, aconselhou João Paulo II a não aceitar a renúncia
do chamado Papa Negro, Peter Hans Kelvebach, superior da Ordem dos Jesuítas,
reafirmando, mesmo no severo e doloroso estado de saúde do jesuíta, que o cargo
era uma “prova divina” (Kelvebach ficou no cargo até à sua inaptidão em 2008).
Da mesma forma, Ratzinger se opôs a incorporação do instituto da renúncia nas
Ordenações Jesuíticas (datada de 1540). Ele mesmo insistiu que João Paulo II,
dolorosamente enfermo, se mantivesse no cargo. Tudo isso gerou o comentário
ácido – “não desce nunca da Cruz” – do cardeal Stanislaw Dziwiz, secretário de
João Paulo II.
Por outro lado, constatou-se, em especial depois
da última missa do Papa, celebrada em 14/02/2013, que Ratzinger não aludiu à
sua saúde como causa básica da renúncia. Bem ao contrário, fez um sermão
político, inédito e duro: criticou os “hipócritas” na Igreja, as cisões
internas e “aqueles que desfiguram o rosto da Igreja”. Frente a tantos
desafios, o papa mostrou-se incapaz de controlar e varrer, nas suas próprias
palavras, “o lixo” que se acumula na Sede Santa. Ora, quem são os “hipócritas”
e qual é o lixo?
Como Ratzinger (até o momento, final de fevereiro
de 2013) não nomeou os seus traidores, o clero externo aos meandros e nichos
recônditos do Vaticano, bem como os milhões de fiéis, ficaram sem saber a quem
o papa condenava. Claro, os média, ainda uma vez, voltou para o amplo
escândalo, que em 2012 abalou o Vaticano.
O VatiLeaks
O escândalo, iniciado pela publicação do livro
do jornalista Gianluigi Nuzzi - “Sua Santidade, as cartas secretas”, 2012 -
mostrava, à luz do dia, uma intensa e mortal luta pelo poder no interior do
Vaticano. O Papa, considerado um “intelectual”, absorto em seus estudos e na
sua música (é um amante apaixonado de Mozart), conservador e antimodernista,
deveria ficar isolado, longe da administração e da política cotidiano da
Igreja. Estas “atribuições” ficariam centralizadas nas mãos do poderoso cardeal
Tarcísio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, um produto típico da
burocracia romana. As grandes questões, como as nomeações para a hierarquia, as
finanças e a previsível e próxima sucessão deveriam estar longe do gabinete do
Papa. É neste contexto que surgem duas questões: de um lado, Nuzzi utilizou-se
de documentos verdadeiros, autênticos e, sem dúvida, sigilosos. Como tais
documentos chegaram ao jornalista? De outro lado, qual a razão do vazamento?
Desde logo o gabinete do Papa, a sua falada
“Família Pontificial”, estava no centro do vazamento. Havia traição. Esta
“família” reunia, e ainda reúne, uma gama heterogênea e estranha de pessoas.
Estranha até para a tradição do Vaticano. Dois homens eram o núcleo central das
relações do Papa com o mundo: de um lado, Paolo Gabriele, mordomo do Papa, com
acesso direto a todos os aposentos e documentos do Papa. Paolo, ou “Paoletto”,
mesmo depois de preso (a partir de maio de 2012) sempre protestou lealdade e
amizade, e mesmo carinho filial, ao Papa. O outro homem forte, desde os tempos
que Ratzinger era cardeal de Munique, era o alemão Georg Gänswein, ordenado
padre em 1984, depois de ser cozinheiro e professor de ski nos Alpes, com uma
vida amorosa pré-hábito conhecida. Gänswein tornou-se, entretanto, o braço direito
do Papa. Jovem (nascido em 1956) entre anciões, é chamado, na Cúria, de “Il
bello George” e foi a inspiração de Donattela Versace para a sua coleção de
moda de 2007.
A estes se uniam quatro irmãs e leigas,
consagradas, que cuidam dos serviços pessoais do Papa. Gabriele e Gänswein eram
amigos e conviviam diariamente com o Papa. Gänswein vivia – e acompanhará o
Papa para o seu retiro depois de 28/02/2013 – no Vaticano, enquanto Gabriele
residia na Via Porta Angelica, no próprio Vaticano, a uma caminhada dos
aposentos do Papa.
Um
‘palheiro insondável de escândalos’
Ora, por que Gabriele traiu? E, o que é
fundamental, o que foi a traição? Durante o julgamento do mordomo papal, este
insistiu, e de forma desconcertante, de que não traiu. De fato copiou cartas e
relatórios secretos desde 2010, mas o fez para proteger o próprio Papa. Na
verdade, em acordo com Gänswein, teriam entendido que o papa estava isolado das
decisões e do “lixo” que inundava o Vaticano. A burocracia comandada por
Tarcisio Bertone, o cardeal secretário de Estado do Vaticano, conseguira criar
uma muralha burocrática capaz de esconder uma gestão, desde há muito tempo,
absolutamente corrupta.
Os pontos principais, o conteúdo dos documentos,
não foram questionados no tribunal, e nem o próprio Gabriele quis falar. O
julgamento centrou-se no conceito de “roubo” e “invasão de privacidade”, e o
conteúdo dos documentos, por isso mesmo, não seria revelado. Contudo, na casa
da Via Porta Angelica foram encontradas 82 caixas de documentos pessoais do
Papa – além de uma pepita de ouro, uma edição histórica e valiosa da “Eneida”,
de 1581, e um cheque de 100 mil euros dados ao Papa pela Universidad Catolica
de Santo Antonio de Murcia (Espanha), em Cuba. Não só Paolo Gabriele roubou os
documentos, como também quis garantias de ter meios financeiros para sobreviver
a uma crise no Vaticano.
Gabriele foi o único acusado; a “Família
Pontificial”, e em especial o “bello Georg Gänswein”, com as suas quatro leigas
consagradas, foi poupado. O mordomo manteve-se em silêncio, pediu perdão e
reafirmou a lealdade ao Papa. Enquanto isso, Tarcisio Bertone, numa declaração
insólita, declarou-se atento para que o réu, a promotoria e o próprio tribunal
não “criassem condições lesivas ao vaticano” (El País, 09/06/2012). Soava como
uma ameaça. Era uma ameaça negociada – logo após a condenação Paolo Gabriele
foi perdoado pelo Papa e colocado em liberdade. Manteve o seu silêncio. No
início de janeiro de 2013, já tomada a decisão da renúncia, o Papa nomeou Georg
Gänswein arcebispo e secretário prefeito da Casa Pontifícia. Tratava-se, agora,
de blindar o “bello Georg” contra qualquer vingança da Cúria, em especial após
a sua renúncia.
O “lixo”
do Vaticano
Paolleto Gabriele, o mordomo, um leigo – sem a
proteção dos títulos eclesiástico e o único condenado – causou lágrimas ao
Papa. Ambos eram verdadeiramente amigos. Por que então traiu o Papa? Ou não foi
traição... O vazamento, feito através do livro de Nuzzi, teria sido a última
cartada da “Família Pontificial” para romper o bloqueio em torno do Papa e
criar dificuldades contra o todo-poderoso Tarcisio Bertone e os demais cardeais
da Cúria. O papa, com certeza, não sabia da conspiração elaborada ao seu favor,
que provocaria a ira dos cardeais da Cúria e a exigência de punição da
“Família”. Ratzinger pode salvar Gänswein, mas entregou Paolleto, como antes
entregara um outro amigo: o chamado “banqueiro do Papa”.
Qual o conteúdo, tão terrível, dos arquivos de
Paolo Gabriele e que poderiam abalar o poder da burocracia da Cúria? Os
dossiês, que o próprio Papa chamou de “lixo do Vaticano”, derramavam-se sobre
temas obscuros e, mesmo, assustadores. Em primeiro lugar uma terrível história,
velha de 30 anos: o desaparecimento da menina Emanuela Orlandi, de 15 anos, em
1983. Emanuela, uma bela adolescente, era filha de um funcionário da Casa
Pontifícia. A menina desapareceu no próprio Vaticano e o seu pai teria tido
acesso, pouco antes, a documentos que comprovavam que o chefe da máfia, Enrico
de Pedis, possuía contas e fazia lavagem de dinheiro através do Banco
Ambrosiano, que cuidava das finanças do Vaticano. Contudo, há outras versões,
ainda mais apavorantes. Uma grande “coincidência”, além de Gänswein ter
assumido a Casa Pontifícia, com acesso aos seus arquivos, é o fato de que o mordomo
Gabriele residia, até à sua prisão, na mesma casa da Via Porta Angelica onde
residira a família de Emanuela Orlandi. O mafioso De Pedis foi enterrado, com
missa solene, na Basílica de Santo Ambrosio, ao lado de papas e cardeais.
As finanças do Vaticano
Em 2012, monsenhor Carlo Maria Viganò, nomeado
em 2009 como Governador do Vaticano, por decisão pessoal de Bento XVI foi
encarregado de fazer uma “limpeza” nas finanças do Papado. Tratava-se de
moralizar licitações, compras, o destino de alugueis e de rendas devidas à
Igreja. Aos poucos Viganò viu-se num emaranhado de interesses e de ocultamentos
que invariavelmente levavam a Tarcisio Bertone e alguns dos cardiais
controladores da Cúria, que acusaram Viganò de incompetência e, mesmo, de
corrupção. O Papa acaba por ceder às pressões da Cúria e, em 2011, “exila”
Vinganò, nomeando-o núncio apostólico em Washington, o que o priva de qualquer
ingerência nos negócios papais. Duas cartas do Monsenhor são publicadas,
confirmando as acusações de corrupção.
O caso Viganò abre caminho para um escândalo
ainda mais grave, agora envolvendo Ettore Gotti Tedeschi, um ex-presidente do
Santander Comsumer Bank e católico praticante, membro da ultraconservadora Opus
Dei, nomeado, como homem de confiança do papa, como presidente do IOR/Instituto
de Obras Religiosas, o nome do Banco do Vaticano. No esforço de colocar em dia
as finanças do Vaticano – pressionado pela Lei 231/2007, da Itália, obrigando à
observação das regras da União Europeia contra lavagem de dinheiro – faz com
que o banqueiro exija das autoridades da Cúria a revelação dos titulares de
centenas de contas secretas, numeradas, que se serviam do banco do Vaticano
para entrar no sistema bancário internacional. A descoberta de Tedeschi é assustadora:
um número relevante de contas pertencia a Máfia italiana, incluindo aí Matteo
Messina Denara, o chefe da Cosa Nostra na Sicília. Outras contas eram de
políticos italianos – cujos nomes não foram revelados – e de celebridades que
procuravam fugir aos impostos. Algumas eram de religiosos, que não podiam, com
certeza, explicar a origem dos recursos postos em suas contas.
Mais uma vez Tarcisio Bertone estava por trás da
oposição ao “banqueiro do Papa”. Com um passivo pesado, envolvendo mortes e
prisões em torno das finanças papais (como no Caso Ambrosiano), Tedeschi
procurou garantir a sua segurança. Coletou dezenas de documentos, cartas e
e-mails envolvendo políticos italianos, empresários e mafiosos com as finanças
da Cúria Romana, num total de 47 detalhados arquivos. Os documentos de Tedeschi
comprovaram umas amplas e longevas operações de lavagem de dinheiro no interior
do Vaticano.
Oficialmente o Vaticano reagiu com “perplexidade
e assombro”, negando conhecer quaisquer contas secretas. Em seguida, no seu
melhor estilo, o cardeal Bertone declarou as acusações de Tedeschi produto de
uma conspiração “judaico-maçônica”, como se ainda vivêssemos no regime de
Salazar ou Franco. Bertone, em seguida, abriu uma ampla frente de ataque contra
Tedeschi, indo de um diagnóstico de desequilíbrio mental até ser, o próprio
Tedeschi, o mentor de toda a corrupção. O banqueiro do Papa foi, então,
demitido por “incompetência”.
Somente em 15/02/2013 o Papa, em um dos seus
últimos atos, nomearia o financista alemão Ernst Von Freyberg, um administrador
de um estaleiro que produz navios de guerra, para substituir Tedeschi. As
autoridades italianas, envolvidas através de contas secretas de financiamento
dos partidos políticos e dos próprios políticos calaram-se. Bertone continuou
falando pelo Papa, que qualificou, em entrevista, como ” (...) um homem manso
que não se deixa intimidar”. Por ironia, será o cardeal Bertone, nascido em
1934, um salesiano com uma carreira típica da Cúria Romana, nomeado secretário
de Estado do Vaticano por Bento XVI, em 2006, e o atual cardeal Camerlengo, que
responderá pelo Vaticano a partir de 28/02/2013.
Enfim, este pastor de Cristo que alimentou com
as próprias mãos os lobos que o cercavam viu-se, ao final, devorado pelos seus
próprios lobos.
Francisco
Carlos Teixeira*
*Francisco Carlos Teixeira é professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).