Uma viagem
sombria com retorno
Subitamente, vi-me cercado por um grande
exército, de figuras anatomicamente estranhas, cujo comandante me ordenou, com
uma altiva rispidez, para eu carregar às costas um pesado saco, cheio de pedras, e,
de seguida, entrar num túnel, cujo fim não estava à vista. Visto dali, o túnel
era escuro como breu, como são todos os túneis, a não ser os que são iluminados
por luz artificial. Mas logo que franqueei a sua grande bocarra, verifiquei que
o seu interior tinha uma claridade intensamente vermelha, que me agredia os
olhos.
O saco tinha o peso do mundo e as pontas finas
das pedras, senti-as como se fossem agulhas, a espetarem-se nas minhas costas,
provocando-me dores alucinantes.
O comandante daquele numeroso exército, de
figuras estranhas, talvez já habituado a coordenar aquela tarefa, antecipou-se aos meus
queixumes, e disse-me que eu iria habituar-me àquelas dores e que deixaria de
as sentir, quando atravessasse o Grande Lago, com o saco de pedras às costas.
Até encontrar o Grande Lago, teria de suportar aquelas dores, concluiu, com a
sua voz dura e agreste.
Mas eu não percebia porque estava neste lugar
inóspito e insípido, e também não sabia como tinha chegado até ali. E, o mais
grave, é que também já não me recordava de onde viera e não consegui perceber
quem era eu, afinal, o que era um sinal evidente de que, por qualquer motivo, perdera a
memória e a noção do espaço e do tempo. Por mais que tentasse desenterrar a
memória, nenhum dos seus fragmentos, resultantes da sua desintegração, eu
consegui encontrar. Estava completamente perdido, naquele mundo, agora mais
intensamente vermelho e que, também agora, me parecia circular, e, na minha
cabeça, reinava a mais completa confusão.
Cheguei derreado ao Grande Lago e, num impulso
violento, larguei o fardo, atirando o saco de pedras para o chão. Para me
refrescar, não tive tempo de me atirar à água, que ali, naquele mundo estranho,
também era da cor do sangue, pois, subitamente, fui atacado por uma forte
convulsão, com o corpo e os braços a tremerem freneticamente, de uma forma
descontrolada.
O meu corpo começou a aquecer e percebi que já
estava a contrair um grande febrão, que me queimava os neurónios e as
entranhas. Gritei, a pedir água. E foi neste momento que vi uma mulher - que, na
sua pose e nas suas vestes, se parecia com a mulher de um faraó, do Antigo
Egipto - a levantar-se de um trono de ouro, com toda a
dignidade imperial, e a começar a descer, com um jarro, apoiado na anca, uma
grande escadaria de mármore.
Bebi com uma enorme sofreguidão a água que me era oferecida por aquelas mãos delicadas, e foi quando ela começou a acariciar-me os cabelos revoltos, que eu desmaiei, pensando que tinha morrido.
Bebi com uma enorme sofreguidão a água que me era oferecida por aquelas mãos delicadas, e foi quando ela começou a acariciar-me os cabelos revoltos, que eu desmaiei, pensando que tinha morrido.
Acordei para a realidade terrena na cama de um
hospital, onde, no limite da negra fronteira, me salvaram a vida, exorcizando o
fantasma da morte.
Alexandre
de Castro
2018 06 07
***«»***
O optimismo que exprimi na minha última
mensagem, a de 26 de Maio de 2018, no dia seguinte à realização da biópsia à próstata,
não passou de uma efémera manifestação de um fogo-fátuo.
Ao princípio da noite, fui acometido por uma
forte convulsão, que se manifestou por fortes e incontroláveis tremores do
corpo, com os braços a oscilarem a um ritmo veloz e frenético. Fui para a
urgência do Hospital de S. José, onde me trataram, para eliminar o tremor,
antes de me internarem no Serviço de Urologia, onde permaneci até o dia de
ontem.
Tudo isto resultou de uma infecção, ao nível da
próstata, provocada por uma bactéria hospitalar, que se infiltrou no meu corpo,
durante realização da biópsia. Teria morrido, se me tivesse atrasado, duas ou
três horas, a ser submetido a um tratamento com antibióticos específicos, em
doses cavalares.
Com a temperatura corporal a ultrapassar a
barreira dos 40º C, delirei durante a noite. Não me lembro nada desses
momentos, em que perdi a noção do espaço e do tempo. Disseram-me, na manhã
seguinte, os três companheiros, com quem compartilhei a mini enfermaria, que,
durante a noite, em pleno delírio, falava com imaginários interlocutores e que
nomeei, pelo nome os meus sobrinhos-netos, incluindo o que nasceu recentemente,
que tem cinco meses, e que leva o meu nome. Disseram-me também que peguei no
meu saco, a fim de fugir do hospital.
No dia seguinte, a confusão na minha cabeça era
muita e perdi a memória recente. Quando vinha para o corredor, para ir à casa
de banho, perdia-me no caminho de regresso (uns três metros de distância,
apenas). Numa das vezes, entrei na mini enfermaria, onde se encontravam quatro
mulheres, que começaram a gritar e a tocar todas as campainhas de alarme, para
chamar os enfermeiros e as enfermeiras.
Tenho a consciência que incomodei muito os meus
três companheiros de camarata, pois não os deixei dormir sossegadamente, que
era o que eles precisavam, pois estavam a recuperar de intervenções cirúrgicas.
Ao quarto dia de internamento, a temperatura
regressou à normalidade, o que era imperioso acontecer, para eu poder ter alta
e regressar a casa.
Naqueles pensamentos solitários, sobre o meu
estado de saúde, alarmava-me com a terrível hipótese de poder perder a
capacidade de escrever. Mas a ausência de lesões cerebrais, assumidas por um
TAC, entretanto realizado, tranquilizou-me. E, na verdade, este texto, que
estou a escrever, mostra que a minha capacidade de escrita não foi afectada.
Alexandre
de Castro
2018 06 07