Saúde: a
gestão pública, a gestão privada e a parasitação dos dinheiros públicos
Durante largos anos a máquina de propaganda
político-ideológica dos sectores privados e dos quadrantes partidários à
direita, insistiram na cassete da superioridade da gestão privada em relação à
gestão pública.
À medida que a dura realidade dos factos foi
mostrando as sucessivas e catastróficas falências de grandes impérios
multinacionais essa cassete perdeu vitalidade e foi procurando encontrar novas
formas de propaganda mais ou menos dissimulada contra os serviços públicos de
saúde sempre envoltas em abundante terminologia tecnocrática.
Aliás, estes mesmos sectores surgiram há meia
dúzia de anos atrás, em plena crise económica, a apelar à nacionalização dos
bancos falidos.
A última versão desta propaganda surgiu com a
apresentação pública do documento estratégico para a Saúde da actual direcção
do PSD ao afirmar expressamente que “... para a população nada muda, sendo
indiferente para os utentes se a unidade é gerida pela iniciativa privada,
pública ou social”.
Indiferente? Mas que embuste monumental !!!
Para os utentes não é indiferente porque a sua
carga fiscal serviria para financiar empresas privadas parasitárias dos
dinheiros públicos e assistiríamos, como noutros países, como é o caso mais
gritante dos Estados Unidos, à selecção adversa dos doentes e à mera procura do
lucro que iria beneficiar os accionistas das empresas a quem a gestão privada
fosse entregue.
Por outro lado, a gestão pública e a gestão
privada têm objectivos distintos e não misturáveis. Não se tratam de modelos
assépticos nos planos político e ideológico.
A campanha política que tem envolvido maiores
investimentos “publicitários” dos detractores do SNS é, como já referi, a da
suposta superioridade natural da gestão privada relativamente à gestão pública.
Segundo os arautos desta campanha, a gestão
pública seria sempre ruinosa, conduzia a graves desperdícios, e traduzia-se por
baixos níveis de eficiência. Além disso, o Estado era sempre um mau gestor, não
demonstrando capacidade para rentabilizar os recursos existentes, conduzindo a
uma permanente insatisfação dos cidadãos.
Quanto à gestão privada, a sua própria natureza
seria, desde logo, uma garantia de êxito e possibilitaria obter resultados
muito superiores a nível do funcionamento dos serviços de saúde e da própria
satisfação dos utentes. De acordo com a experiência existente em diversos
países e com múltiplos estudos efectuados, mesmo no plano específico da saúde,
não se verifica qualquer evidência acerca desta apregoada
superioridade.
Uma das operações teóricas e políticas mais bem
sucedidas do neoliberalismo foi instaurar os debates em torno da oposição
estatal / privado.
A deslocação do debate para este eixo traduz-se
numa situação de favorecimento das teses neoliberais, em que o estatal é
caracterizado como ineficiente, aquele que cobra impostos e desenvolve maus
serviços à população, como burocrático, como corrupto, como opressor, enquanto
que o privado é promovido como espaço de liberdade individual, de criação, de
imaginação, de dinamismo.
Como refere o Prof. Emir Sader, a oposição
estatal / privado reduz o debate a dois termos que, na realidade, não são
necessariamente contraditórios, porque o estatal não é um pólo, mas um campo de
disputa que, nos nossos tempos, é hegemonizado pelos interesses privados.
Quanto ao privado, ele não constitui a esfera
dos indivíduos, mas representa os interesses mercantis, como se verifica nos
processos de privatização, que não se traduziram em processos de desestatização
em favor dos indivíduos e beneficiaram as grandes corporações privadas, as que
dominam o mercado.
Dentro do próprio Estado desenvolve-se, de forma
surda ou aberta, o conflito e a luta entre os que defendem os interesses
públicos e os interesses mercantis, entre o que Pierre Bourdieu chamou de
braços esquerdo e direito do Estado. Nesse sentido, a polarização essencial não
se verifica entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil (
Emir Sader;Público Versus mercantile).
Em meados da década de 1980, o Banco Mundial
(BM) publicou um documento intitulado “O financiamento dos serviços de saúde
dos países em desenvolvimento: Uma agenda para a reforma”. (Frenk, J.. El
financiamento como instrumento de política pública. Bol. Of. Sanit. Panam.,
103(6), 1987.) Este documento colocava, entre outras, as seguintes concepções
orientadoras:
Os serviços curativos só produzem benefícios
privados, ou seja, benefícios ao consumidor directo do serviço e não à
sociedade no seu conjunto.
Existência de um sector dominante de serviços
curativos localizados no sector privado, e de um sector governamental paralelo
de prevenção e tratamento básico para os pobres.
Defesa de um modelo fragmentado de prestação de
cuidados.
Cobrança de taxas aos utentes dos serviços de
saúde.
Desenvolvimento de seguros de saúde.
Emprego eficiente dos recursos não
governamentais, (numa clara perspectiva de rápido desenvolvimento da iniciativa
privada).
Apologia extrema da suposta superioridade total
dos serviços privados.
Descentralização dos serviços governamentais de
saúde, acompanhada da forte diminuição do volume de serviços da
responsabilidade do Estado.
A doutrina ideológica neoliberal deriva deste
tipo de documentos oriundos de entidades multinacionais como o BM,
representando a sua designação, por si só, uma tentativa de denegrir o
liberalismo e o seu significado de progresso social e político.
Enquanto nos séculos XVIII E XIX o liberalismo
foi a expressão do próprio desenvolvimento do capitalismo empenhado em liquidar
as excessivas tutelas e os entraves feudais, o neoliberalismo traduz-se, agora,
numa acção oposta ao desenvolvimento e progresso das sociedades.
A palavra neoliberalismo passou a ser uma forma
elegante de chamar aos mais conservadores o que antes era designado por
retrógrado ou reaccionário e uma etiqueta com que se encobre a moderna economia
de mercado.
Analisando os factos no seu respectivo contexto
histórico, importa ter em conta que no século XIX o liberalismo significou a
consolidação dos conceitos de liberdade e democracia, encarnando os esforços de
progresso, de avanço científico e de desenvolvimento das nações.
O liberalismo opôs-se ao dirigismo do Estado,
enfrentou o despotismo, foi ideário da tolerância e da fraternidade humana.
Os graves resultados económicos e sociais a que
tem conduzido a “economia de casino” do neoliberalismo só poderá prosseguir com
regimes políticos cada vez mais autoritários e repressivos.
São estes resultados que têm determinado, em
grande medida, a emergência da extrema-direita em diversos países europeus e
latino-americanos.
Defender a gestão por privados nos serviços
públicos é o mesmo que querer misturar azeite e água.
A gestão pública e a gestão privada têm
finalidades diferentes.
A gestão pública tem como foco fundamental o bem
comum da sociedade e a sua evolução civilizacional, a gestão privada está
vocacionada para o lucro, o consumo e o negócio.
A gestão pública existe para atingir uma missão
que é considerada socialmente valiosa, a gestão privada existe para maximizar o
património dos accionistas, tendo com critério de bom desempenho o resultado
financeiro.
A gestão pública visa a criação de valor público
e a gestão privada visa ganhar dinheiro para os seus acccionistas e
proprietários mediante a produção de bens e serviços vendidos com lucro.
As organizações públicas têm um controle
político do Estado por meio de eleições. Já nas empresas privadas, o controle é
exercido pelo mercado por meio da concorrência entre as companhias e pelos
accionistas.
É possível assegurar o bem comum com a gestão
privada de serviços públicos?
É possível conciliar bem comum e desenvolvimento
social com a maximização dos lucros dos accionistas?
Uma das cassetes propagandísticas desses
sectores partidários e comerciais foi a de que sendo uma gestão privada
saberiam gerir melhor.
Mas o que é escandaloso é estes sectores
insistirem no seu fundamentalismo com a burka neoliberal, quando há poucos anos
atrás assistimos à derrocada de diversas multinacionais e grandes consórcios
bancários, reveladores do fracasso da gestão privada. É igualmente escandaloso
que virem os seus apetites para os serviços públicos de saúde quando o nosso
SNS está entre os melhores sistemas de saúde a nível mundial e quando é o
próprio director –geral da OMS a afirmá-lo de forma eloquente.
Apesar das insuficiências e limitações do nosso
SNS, que se tornam mais perceptíveis porque se trata de um serviço público que
presta serviços todas as horas de cada dia e todos os dias de cada ano, aquilo
que está em causa é sua redinamização e adequação às novas exigências,
defendendo-o de quem quer apropriar-se dos dinheiros públicos para aumentar os
lucros dos seus accionistas.
Perante a dimensão da ofensiva contra o SNS,
importa agregar amplos apoios e vontades que impeçam a destruição da maior
conquista política, social e humana da nossa Democracia.
Mário
Jorge Neves, médico, dirigente sindical